Mário, hóspede no mundo

Mauro Santayanna

Tenho de Mário Palmério uma inquietante memória: a de alguém que subitamente nos visita em nossa casa, e antes que entendamos a verdadeira razão de sua presença, parte com certa ironia, deixando uma sombra de vago mistério.


Da direita para esquerda: José Palmério, Mário Palmério, Marcelo Palmério e Marília Palmério, Assunção/Paraguai, 1962.

Mário não foi o que podemos chamar de hóspede bem comportado. Ele queria conhecer tudo do mundo, indagar sobre o destino de todos os caminhos, e investigar não só a natureza, mas também penetrar no coração e nos sonhos dos homens. Sua relação com os bichos e com as árvores, com as águas e com as pedras, o fazia devoto especial de São Francisco. Mas o São Francisco que ele admirava não era passivo contemplador, e sim amoroso ativo, e, em cuja atividade amorosa, Mário incluía as relações do santo com a bela e igualmente santificada Clara, aquela moça da nobreza de Assis, que o jovem santo levou para os casebres de Porciúncula.

O escritor Ponson Du Terrail, em uma aventura de seu célebre personagem Rocambole, diz que o conde montou o cavalo e saiu galopando em todas as direções. Esse cochilo literário poderia identificar Mário: ele galopava em todas as direções do conhecimento e da vida. Professor de matemática, engenheiro amador, arquiteto de seus próprios projetos, educador emérito, músico, compositor, homem público, diplomata, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, fazendeiro, explorador. Foi etólogo e botânico em suas explorações amazônicas, para as quais teve que se fazer navegador fluvial. Tive a oportunidade de conviver com Mário em tempos difíceis e em tempos amenos, e ele era o mesmo nas manhãs abertas de primavera e sob os temporais relampejantes dos nossos verões.

Admirei todos os mários palmérios que ele foi, mas meu ofício me aproximou mais de seu imenso talento literário. Se Mário se houvesse dedicado mais à literatura do que às outras tarefas em que se empenhou, a sua presença no mundo das letras teria sido bem maior do que foi. Mas outros poderão dizer que se Mário tivesse dado mais tempo à música, com outras composições de força semelhante à guarânia Saudade, que ele compôs em espanhol, quando Embaixador no Paraguai, ele seria hoje lembrado como os maiores compositores de seu tempo.


Em pé, da direita para esq.: Deputado Mário Palmério, Aldo Bruno e Mário Floriano. Sentados, da esquerda para a direita: Juscelino Kubitschek e Dr. Jorge Furtado, em Uberaba/MG, 195?

Sempre tive a impressão de que Mário gostava de desafiar a sua inteligência e a sua sensibilidade, para fazer todas as coisas que lhe pareciam possíveis. É possível contar uma história ao mesmo tempo picaresca e dramática? — ele se deve haver perguntado, antes de escrever Vila dos Confins. É possível transformar um episódio policial bem antigo em romance denso, poderoso e trágico? E ele escreveu Chapadão do Bugre.

É possível reviver as aventuras de Frei Gaspar de Carvajal nas águas amazônicas? E Mário partiu para a selva. E assim foi em todas as coisas que fez na vida e que ficaram como testemunho de sua grandeza. Ficaram na Universidade de Uberaba. Ficaram nas prateleiras das livrarias e das bibliotecas. Ficaram na memória encantada de seus amigos e de sua família.

Um dos melhores depoimentos que ouvi sobre Mário foi o de Hugo Rodrigues da Cunha: Mário fez tudo aquilo que todos nós queremos fazer, mas não temos coragem para começar.

Nem a coragem, nem o talento, meu caro Hugo. Mário tinha coragem, talento, e uma graça sobrenatural que fazia grandes virtudes de pequenos pecados.

Mário foi excepcional romancista e profundamente solidário com o povo. Os seus heróis são gente do chão mais profundo de nossa humanidade, como Xixi Piriá e José de Arimatéia. Mais ainda: como bom irmão de São Francisco, humaniza, de forma carinhosa e singular, a figura da besta Camurça, a quem dá alma e sentimentos.

Como Cervantes, ele foi um escritor que encarnou seus personagens, antes de os criar. Ele soube conhecer a vida, antes de descrevê-la.

Texto lido pelo reitor da Universidade de Uberaba, Marcelo Palmério, no lançamento do projeto Memorial Mário Palmério, na noite de 26 de outubro de 2004.