Discurso
de posse na Academia Brasileira de Letras, pronunciada
a 22 de novembro de 1968.
Senhor
Presidente, Senhores Acadêmicos:
FAZ
UM ANO que, neste mesmo salão da Academia Brasileira
de Letras, João Guimarães Rosa vinha
ocupar assento entre vós. E, em seu discurso,
as palavras iniciais foram igualmente para rememorar
o pé-de-serra natal:
Cordisburgo
era pequenina terra sertaneja, trás
montanha, no meio de Minas Gerais. Só
quase lugar, mas tão de repente bonito:
lá se desencerra a Gruta de Maquiné,
milmaravilha, a das Fadas; e o próprio
campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado
bravo, entre gentis morros ou sobre o demais
das estrelas, falava-se antes: "os
pastos da Vista Alegre".
Bastava
que o ficcionista, tão de início, não
desse velas à imaginação, não
transportasse Miguilim para o Mutum sozinho e remoto
- cabeceira chuvosa de buritizal, vereda entre as
mil veredas dos gerais são-franciscanos - bastava
que relembrasse, o acadêmico que esta Casa recepcionava
em tão saudosa noite, algo mais de sua infância
e de sua terra montesinha... e, talvez, nessa evocação
se encontrasse resposta, se não para todas,
pelo menos para muitas importantes perguntas da curiosidade,
hoje universal, em torno da vida e da arte do grande
escritor brasileiro.
Mário
Palmério tomou posse na Cadeira n. 2
da ABL no dia 22 de novembro de 1968 |
A
casa, morada da família e armazém ao
mesmo tempo, de concorrido balcão a esvaziar
o sortido tem-de-tudo do negócio sertanejo...
O carro-de-boi ou o cargueiro-de-burro a trazer o
produto fazendeiro, e a retornar com o sal e o arame
chegados pelo vagão da Central do Brasil...
A vaqueirama espalhafatosa e novidadeira, acamaradada
a beber sua pinga e a gabolar suas peripécias,
à espera de que encostasse o trem para o desembarque
do chifrudo e brabo gado urucuiano, ou para entupir
as gaiolas de boiada enxuta, erada e invernada no
sustancioso catingueiro das fazendas do Coronel Tonico
Bastos... E havia ainda, ali na Rua de São
José - Rua de Cima, mais comumente conhecida
- na mesma esquina do beco em frente da Estação,
congênere casa de comércio, de propriedade
de Seu Geraldino Rocha, respeitável cidadão,
capitalista, de casa e loja sempre abertas para o
desempenho do movimentado afazer de negociante, emprestador
de dinheiro e chefe político. E também,
tudo na influência do beco com a Rua de São
José: o Argentina Hotel, o hotel de Dona Argentina
do Seu Olímpio - o Hotel da Nhatinha - ponto
de almoço e janta, razão de ser da parada
obrigatória, duas vezes por dia, dos trens
passageiros e cargueiros da Estrada de Ferro.
O
menino João... João? Pois quase que
Ladislau, que tal era o nome pensado pelo pai, em
homenagem a um sete-lagoano de antigas e mui amigas
relações. Sim, João - Joãozinho,
Joãozito... - que o primogênito de Dona
Chiquitinha e Seu Florduardo nascera em fins de junho,
e mais valera a força do padroeiro junino e
joanino, de ainda não apagadas fogueiras, mastros
de pindaíba ainda de pé, a efígie
de algodãozinho embandeirada e espetada de
ordinária laranja azeda, espécie de
ex-voto preventivo, na fiúza de que o santo
as adoçasse e afarturasse para a outra safra.
Os primeiros anos do menino João... A Central
do Brasil já esticava trilhos para além
de Corinto, inaugurando as estações
de Pirapora e Diamantina, e principiava a abrir picada
em demanda de Montes Claros. E o avançar da
ferrovia era um sem-fim de mundo que começava
a desbravar-se, lado e outro dos caminhos novos que
subiam a escampada chã mineira, para o norte,
nordeste e noroeste, para as caatingas do sul baiano
e as empedernidas encostas do planalto de Goiás
- toda a desmarcada capitania do coronelato barranqueiro
do rio São Francisco, palco do guinhol jagunço,
desabusado e perpétuo.
Da
única janela ou de uma das cinco porta da venda
do pai Florduardo, sobranceira de dois lanços
de pedra, dava para o menino assistir, ali embaixo,
no pátio da estação, ao encher
ou descarregar das gaiolas de boi. O corre-corre do
povo, a molecada incendida a embarafustar por entre
as pernas dos mais velhos, o sustos do mulherio janeleiro,
o paciente porque perigoso espremer da boiada na seringazinha
do curral... João Guimarães Rosa averbará
para a imortalidade, anos depois, em seu "O Burrinho
Pedrês", a divertida cena do embarque de
uma boiada gorda na estaçãozinha da
Central:
Com
um último trompejo do berrante, engarrafam
no curral da estrada de ferro o rebanho, que rola
para dentro e se espalha, como um balaio de laranjas
despejado no chão...
E
prossegue, em trecho catado mais acolá:
E
começou o embarque, rico de sortes,
peripécias e aplausos que durou mais
de hora e meia, até a boiada inteira,
lote a lote, desaparecer no bojo dos carros-jaula
dos dois trens especiais. E pois, logo depois,
encharcados, enlameados, cansadíssimos
e famintos, os vaqueiros saíram para
comer, e beber, principalmente, porque força
há na que custa dinheiro da gente.
E com isso deixaram todos de caber no dia,
que rodou e se foi, redondo e repleto, com
a tarde a cair rente, uma tarde triste de
tempo frio.
Mas
Cordisburgo não produzia, de matéria
a ser utilizada pelo futuro novelista, apenas esses
espetáculos de todo dia, comuns em arraial
boiadeiro crescido à roda do curral-de-embarque
de uma estação de trem-de-ferro. Boa
parte de sua ficção, construiu-a Guimarães
Rosa com os tipos humanos que ele conheceu em seu
burgo de nascimento e com as histórias ouvidas
aos fazendeiros e peões que paravam, para o
mata-bicho e a prosa, na Venda do Florduardo e na
do vizinho e manda-chuva municipal, Geraldino Rocha.
O pai - mineiro de Caeté, de instrução
razoável, imaginoso, caçador, seu tanto
ou quanto acaipirado e bonachão - esse tinha
seu particular repertório, ajuntado pelos lugarejos
em que vivera, antes de vir firmar pé ali na
Vista Alegre; assunto, pois, e de primeira, foi mercadoria
que nunca lhe faltou na venda. O compulsar da comprida
correspondência que Florduardo manteve com o
filho, mesmo quando andava este pelo exterior a fazer
carreira no Itamarati, há de fornecer, aos
interessados em acurar o estudo de Guimarães
Rosa, útil e farta informação,
não só no tocante à tipologia
e temática de sua obra literária, mas
no relativo, também, ao copioso e colorido
vocabulário roceiro que tanto a aformoseia
e autentica. As pessoas que privaram com Florduardo
Pinto Rosa confirmam-lhe o rico sortimento de anedotas,
casos e observações, e a essa atulhada
bruaca de velhos guardados do pai é que o escritor
principalmente recorria, quando carecido de um refresco
de memória ou de novas inspirações
para sua fábula opulenta.
E
o povo itinerante, a correição de passageiros
descidos do comboio emboaba para o almoço ou
o jantar no Hotel da Nhatina, parede-meia com a venda,
de calçada e quintal quase em comum? Por ali
transitava de tudo: boiadeiros, caixeiros-viajantes,
mascates, garimpeiros, graduados e praças da
polícia destacada no calcanhar geralista, e,
não raro, os pelotões da Captura, os
famigerados volantes da temida - pois tal e
qual facinorosa - tropa militar daqueles tempos. Foi
mais tarde, fardado de capitão-médico
da Força Pública de Minas Gerais, que
Guimarães Rosa, na convivência de velhos
milicianos, camaradas do 9.º Batalhão
de Barbacena, e na papelada dos porões de outros
quartéis, pôde dar-se à paciente
investigação dos figurantes da variada
comparsaria de Grande Sertão: Veredas.
Muitos desses personagens, porém, e muitas
das suas façanhas, já eram - gente e
coisa - assunto conhecido, aprendido com os pensionistas
do Hotel da Nhatina pelo menino perguntador de Cordisburgo.
Duas
pessoas da família de João Guimarães
Rosa merecem ser de especial lembradas, porque de
sobremarcada influência na formação
do escritor: o avô materno e também padrinho
Luís Guimarães, e o Tio Cândido.
O primeiro, em motivo da pronta percepção
que teve dos dons de inteligência do neto e
afilhado, levando-o consigo logo-logo pôde mudar-se
para Belo Horizonte, buscando-lhe descortino mais
aberto que o perfil montanhoso do arraial; o segundo,
afetuosamente citado em um dos quatro prefácios
explicativos do livro Tutaméia:
Meu
Mestre foi, em certo sentido, o Tio Cândido.
E
Rosa esclarece:
Era
ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador,
capiau comum, aninhado em meios-termos,
acocorado. Mas também parente meu
em espírito e misteriousanças.
De fato, aceitava Deus-como ideal, afetividade
e protoprincípio-pio, inabalável.
E a Providência: as forças
que regem o mundo, fechando-as em seus limites,
segundo Anaximandro [...] Tio Cândido
era curtido homem, transurucuiano, de palavras
descontadas.
Nesse
rol de boa gente caseira há de incluir-se o
pároco de Cordisburgo, ao tempo do menino João:
Frei Esteves, frade franciscano, talvez quem primeiro
adivinhasse a inclinação do pequeno
por tudo quanto era "estrangeiro", tudo
quanto ele já percebia existir além
dos morros e dos pastos adjacentes, das pontas de
trilho da estrada de ferro e do Sertão dos
Gerais. É que João aprendera a ler sozinho,
não entrando ainda nos quatro anos - testemunham-no
a família e mais conviventes de meninice -
servindo-lhe de cartilha as letras gaúchas
dos rótulos dos caixões e mais volumes
de mercadoria, cabeçalhos de jornal, e impressos
em caixa-alta de toda sorte. Brincar com elas havia
virado ocupaçãozinha favorita: desenhá-las,
recortá-las à tesourinha, juntá-las
e arrumá-las de vário modo, eis o passatempo
em que se absorvia o menino quieto, ensimesmado, misterioso
e sonhador - desinteressado do pique e da bola-de-meia,
e de outras distrações mais naturais
à infância. Vindo-lhe um dia ao alcance
pequenino atlas cartográfico, enamorou-se de
imediato pelo livro, passando a copiar os mapas e
a soletrar os esquisitos nomes encontrados naquela
mina encantada. debruçava-se demasiadamente,
porém, sobre as páginas, quase que as
tendo de encostar aos olhos, para distinguir a tipografia
de composição miúda. Atinam-lhe,
então, com a miopia, e tratam de impor-lhe
os óculos. Daí por diante é que
se junta fome com vontade de comer, e nada mais fugiria
à voraz curiosice da singularíssima
criança. O jeito foi metê-la, sem delongar
idade, na apertada escola primária de Mestre
Candinho, logo ali atrás da venda, de grito
da Estação.
Corria
o tempo. Frei Esteves vigiava, feitorando o progresso
do pequeno, admirado de sua docilidade e, mais que
isso, da ligeireza com que se adiantava nas primeiras
letras. O frade dava também a sua ajuda: fazia
o menino ler os jornais que chegavam a Cordisburgo
- na época o que vogava eram as notícias
da Primeira Grande Guerra - e punha-o a alfinetar
na geografia os pontos onde mais lavrava o fogo do
conflito, mandando-o escrever e pronunciar corretamente
os ásperos nomes dos generais e cidades em
evidência. Sim, Frei Esteves entusiasmava-se.
Sabia, o arguto ovelheiro do rebanho vilarengo, que
lidava com excepcional inteligência, superiormente
poderosa em imaginação e avidez de aprender,
e ia carregando a mão, carregando... - sabe
lá Deus se não esperançado de
tanger o meigo cordeirinho para o redil da Ordem.
Quando dão fé, olha o frade a lecionar,
ao borrego peticego, francês, e até mesmo
um contagotado e paciencioso principiozinho de latim!
Avesso
a falar de si mesmo, Guimarães Rosa legou escasso
subsídio autobiográfico. Notório
seu desinteresse por depoimentos públicos,
reportagens de imprensa, e outras formas de divulgação
e propaganda pessoal. Sem embargo, assinava cartas,
nem um nada esquivo em preencher questionários
- hoje tão em moda na pedagogia das letras
- que lhe enviavam estudantes de cursos secundário
e superior. Referem companheiros seus de Itamarati
a passagem acontecida pouco antes de sua morte, já
desde muito alçado às grimpas da glória
literária. Acabava ele de negar-se, a pés
juntos, a conceder uma entrevista - era estrangeiro
o repórter, e, entre outras alegações,
declarava ter-se deslocado ao Brasil com essa exclusiva
finalidade - quando se apresenta à Divisão
de Fronteiras do Ministério das Relações
Exteriores, sem protocolar aviso - muito à
simpática maneira dos dias atuais - uma pencazinha
de meninotas, alunas de um curso clássico das
imediações. As colegiais invadem o gabinete
e mostram ao embaixador trabalho escolar sobre um
dos livros dele. A obstinada e até que impiedosa
resistência ao assédio do jornalista
transmudou-se, então, de instantâneo,
na mais aberta e sorridente acolhida. Rosa conversou
largo tempo com as mocinhas, deu-lhes corda, divertiu-se
a valer, e acabou respondendo a todos os pontos da
encomenda do professor, passando até a ditar,
bondosamente, os quesitos que entendia conveniente
relevar.
A
propósito de suas cartas - certo de muita valia
para a análise da obra rosiana - andam elas
por aí, espalhadas não se sabe se em
poucas, se em muitas mãos. Em uma delas, pode-se
ajuizar o apreço do escritor por esse tipo
de correspondência, e encontrar um autodepoimento
do temporão pendor romanesco, revelado ainda
a tempo de criança aldeã. Diz Guimarães
Rosa a uma aluna de Belo Horizonte:
Assim,
tenho de responder depressa, depressa, para
não deixar sem matéria Você
e suas Coleguinhas. [...] Não repare,
pois, se os quesitos vão preenchidos
de modo curto e fosco. Mas faço-o
com vivo carinho e sincera alegria. Assim:
1) Desde menino, muito pequeno, eu
brincava de imaginar intermináveis
estórias, verdadeiros romances; quando
comecei a estudar geografia-matéria
de que sempre gostei-colocava as personagens
e cenas nas mais variadas cidades e países:
um faroleiro, na Grécia, que namorava
uma moça no Japão, fugiam
para a Noruega, depois iam passear no México...
coisas desse jeito, quase surrealistas.
A
resposta a outro item descobre as feridas que o formão
da infância lhe insculpira na alma:
IV
É difícil dizer qual
o livro (da gente) preferido. A gente sempre
gosta mais de um livro futuro, que se pensa
ainda escrever. De qualquer modo, entretanto,
posso dizer sinceramente que, de tudo o
que escrevi, gosto mais é da história
de Miguilim (o título é "Campo
Geral", do livro Corpo de Baile. Por
quê? Porque ela é mais forte
que o autor, sempre me emociona; eu choro,
cada vez que a releio, mesmo para rever
as provas tipográficas. Mas o porquê
mesmo a gente não sabe, são
mistérios do mundo afetivo.
Quando
o artista chega a emocionar-se tão estranhada
e incontidamente assim, é porque logrou a perfeita
projeção de si mesmo. Acertado será,
pois, admitir seja a "estória de Miguilim",
isto é, a novela "Campo Geral", o
marco mestre das muitas outras referências que
a extensão da obra de Guimarães Rosa
permite sugerir.
Os
dois volumes da primeira edição do Corpo
de Baile, harmonioso encadeamento de sete novelas,
cujo primeiro elo é a já muito referida
"Campo Geral", vieram à estampa em
janeiro de 1956. Fixado aí o ponto de partida,
a trena do tempo medirá, então, em contagem
regressiva, quarenta anos redondos, da publicação
do livro até a remota época em que o
menino João, com oito anos, se despedia, em
Cordisburgo, da escola primária de Mestre Candinho
e das aulas particulares do atilado Frei Esteves.
Agora,
com o zero da fita cronológica no mesmo marco
mestre inicial, e adotado igual critério retrocessivo
de medida, afinquem-se mais umas poucas estacas intermediárias
nas referências seguintes:
1952
- quatro anos, portanto, antes do lançamento
de Corpo de Baile, viagem de Guimarães
Rosa, a cavalo, na culatra de uma boiada sertaneja
de trezentas e poucas reses, do arraial de Andrequicé
a Araçaí, tudo nos gerais são-franciscanos;
estirão de cinqüenta léguas, e
dez esticadas marchas de sol a sol;
1946
- dez anos de distância, à ré
do tempo: publicação, pela Editora Universal,
de Sagarana;
1937
- dezenove anos: Prêmio Humberto de Campos,
instituído pela Livraria José Olympio
Editora, ao qual Guimarães Rosa concorreu,
obtendo o segundo lugar, com as histórias que,
totalmente revistas e depuradas, dariam depois o livro
Sagarana;
1936
- vinte anos, sempre na direção do passado:
Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras,
outorgado a Guimarães Rosa pelo seu livro Magma;
1929/1930
- vinte e seis anos, lido em última mediação
retrospectiva: aparecimento, na revista O Cruzeiro,
de três contos assinados por João Guimarães
Rosa - sua estréia, portanto, na literatura
brasileira de ficção.
Somadas
a estas cinco as estacas inicial e final da contagem
- saída de João Guimarães Rosa
de Cordisburgo e publicação da "estória
de Miguilim" - serão sete os pontos de
informação que balizam, num dilatado
trecho de vida de quarenta anos, os acontecimentos
mais significativos do processo de aprendizagem, acumulamento
de cultura e aprimoramento do escritor, desde a hora
em que o alfabetizaram e lhe deixaram à mão
papel e lápis, até o momento em que
pôde - coração aos solavancos
e olhos mareados - contemplar plenamente realizada
a sua vocação artística.
Senhor
Presidente, Senhores Acadêmicos:
Graças
ao vosso sufrágio, aqui me encontro para tomar
posse da cadeira que Guimarães Rosa ocupou
durante horas tão diminutas. Regimento e tradição
desta Academia pedem, da parte de quem sucede, oração
de homenagem e louvor ao sucedido. No meu caso, o
panegírico não é só obediente,
protocolar: é superior mandamento de afeição
e consciência.
João
Guimarães Rosa não foi apenas um querido
amigo: foi-me o mestre maior, dia a dia mais e mais
admirado e respeitado. Bastava o afeto, pois, para
que redobrasse de esforço no levantar-lhe as
pisadas, no desvelar-lhe o ainda mal conhecido de
sua predestinação, pode-se dizer monástica,
de estudioso sem fadiga, trazer demão em suma,
tanto quanto possível vera e proveitosa, aos
especialistas que já lhe estão a investigar
e especular vida e obra mais acurada e competentemente.
Outra razão, sem embargo, é o estímulo,
inseparável e instante, da minha convicção
da grandeza de Guimarães Rosa, convencimento
que apenas se modifica para crescer: toda vez em que
se assina novo e sério e inteligente laudo
crítico sobre a obra de Guimarães Rosa
- e não somente aqui, mas, em consagrador crescendo,
também fora daqui - é para lhe categorizar
o nome e emoldurá-lo na galeria dos grandes
vultos das letras universais.
Rastrear-lhe
as veredas... Voltar a Cordisburgo, seria agora só
para visitar de novo, e com mais prazo, a Gruta de
Maquiné, onde os tesouros de muitos Ali-Babás
mal-e-mal ocupariam uma de suas prodigiosas naves
sem conta, em cujas trevosas entranhas - é
o que por lá se diz - morou um sábio,
o Dr. Lund regressado a troglodita, enlurado na profundura
de um oco subtérreo, a exumar seus fósseis
e a quebrar cabeça com os rabiscos bugres das
paredes; chegar, mais uma vez, à Fazenda Saco-dos-Cochos,
do José Saturnino, gozar-lhe o convívio
e o farturento pomar; rever a boa gente cidadã,
que ainda bem se recorda do sossegadinho menino de
óculos, o filhote prodígio de Dona Chiquitinha
e Seu Florduardo; reabrir a casa da venda, onde Rosa
nasceu e morou nos seus primeiros oito anos - agora
abandonada e a desabar, infestada da ardida inhaca
de fecundíssima tribo de morcegos - varar pelos
alçapões do assoalho podre e ir reconferir,
no quintal, as jabuticabeiras e os abacateiros, se
ainda e milagrosamente de pé; ao fim e ao cabo,
reviver, em tudo e em todos, o cenário serrano
e as figuras da infância e das histórias
de Guimarães Rosa. É principalmente
em "Recado do Morro", a quarta novela de
Corpo de Baile, que ressurge, fiel e quase
inteira de passagem e gente, a terrinha sertaneja
do menino João. Eis como a descreve, em parte
apenas e em curto golpe de pincel, a mão amorosa
e correta do grande artista:
Serras
e serras, por prolongação.
Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes
pedras violáceas, com matagal ou
lavadas. Tudo calcário. E elas se
roem, não raro, em formas-que nem
pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés,
guaritas, grades, campanários, parados
animais, destroços de estátuas
ou vultos de criaturas. Por lá, qualquer
voz volta em belo eco, e qualquer chuva
suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-íris,
cor por cor, vivente longo ao solsim, feito
um pavão. Uma redondas chuvas ácidas,
de grande diâmetro, chuvas cavadoras,
recalcantes, que caem fumegando com vapor
e empurram enxurradas mão de rios,
se engolfam descendo por funis e furnas,
antros e grotas, com tardo gorgolo musical.
E
Guimarães Rosa, para repovoar este cenário,
vai buscar, um por um, os moradores da aldeola: Seu
Alquiste, Frei Sinfrão, Seu Jujuca do Açude,
o Ivo da Tia Merência...
Depois
de Cordisburgo, Belo Horizonte. Aí, para tirar
prova da passagem de João Guimarães
Rosa pelo Grupo Escolar Afonso Pena e suas idas à
Biblioteca Pública. Em seguida, o internato
em São João del-Rei, para onde acorria
- como se fora sucursal leiga do Caraça - a
criançada mineira mais bem dotada de cabeça
ou mais carecida de aperto. Dirigia o colégio
de São João del-Rei, dando-lhe o renome
que chegou a discorrer por todo o Estado, o Professor
Lara Resende. Foi lá que Rosa tirou os primeiros
preparatórios, e - ao que parece - continuou
bravamente o latim de Frei Esteves.
Voltou,
todavia, por motivos de saúde, ano e pouco
depois, para Belo Horizonte, ingresando no Colégio
Arnaldo, dos padres alemães da Congregação
do Verbo Divino. Encontra-se nos arquivos da secretaria
do estabelecimento, no ano de 1923, o nome do interno
João Guimarães Rosa, apontado no registro
de matrícula da terceira série ginasial.
Vive ainda - e de sadia, conservada e útil
memória, em despeito dos seus entre setenta
e oitenta e muitos anos - o Padre Wilhelm Gross, que
integrava, já àquele tempo, o corpo
docente do colégio. Lembra-se ele muito bem
do rapaz espigadote, de óculos de grossas lentes,
silencioso e macio de passo, em extremo arredio -
o seu melhor aluno de inglês e alemão.
Em meio de outros depoimentos relativos ao trânsito
de Rosa pelo Colégio Arnaldo, há o narrado
por antigo colega de classe, o Dr. Lívio Renault,
médico ilustre de Belo Horizonte. Era ele,
Lívio, o aluno que obtinha o melhor grau nos
trabalhos de redação dados pelo mestre
de português. Certo dia, Rosa oborda-o modestamente,
curioso de saber aonde ia o colega garimpar o vocabulário
e floreios outros que lhe faziam as composições
tão elogiadas pelo professor, merecedoras de
nota sempre e sempre distinta. E Lívio, não
obstante o risco da competição que iria
correr de então por diante, não sonega
a receita: Camilo... - cuja obra completa, sem falta
de um único volume, alumiava as prateleiras
da biblioteca do pai. Os padres do Colégio,
duros de disciplina, mais rijos ainda em matéria
de religião, só permitiam no internato
- que aí seria menos difícil a vigilância
- livro por eles previamente examinado e aprovado.
Camilo Castelo Branco... - pois sim! O destabocado
é que não vazaria pelos apertados furos
da peneira! Mas vazou - de contrabando, mas passou...
- por debaixo do paletó do camarada externo.
Foi então que Guimarães Rosa pôde
ler - e note-se: aos quinze anos de idade - toda a
vasta obra camiliana. Sim, toda, todinha - garante
o Dr. Lívio - baldeado tomo a tomo das estantes
do erudito e saudoso educador mineiro Pofessor Leon
Renault. O que e o quanto de influência terá
entalhado e marcado, na esculturação
da personalidade artística de Guimarães
Rosa, a acerada garra do velho e dominador leão
de São Miguel de Seide, cabe aos técnicos
da investigação literária esmiuçar
e discernir.
É
no Ginásio Mineiro, oficial, famoso pela seriedade
das bancas examinadoras, que Rosa vai concluir preparatórios.
Deixa marca, ali também, ao enfrentar o rigor
dos rigores, o Professor Valadares, catedrático
de Geografia. Raríssimos, na longa tradição
do Ginásio Mineiro, os alunos que alcançaram
a nota máxima com o austero examinador. Ao
perceber que alguém estava a pico de merecê-la,
o lente prolongava o exame e alteava a voz, para chamar
atenção da sala. Dava o dez,
dava, mas após esvaziar a algibeira de todo
um escolhido estoque de perguntas, bem encaixadas
dentro do ponto sorteado - para que, assim, lhe atestassem
a correção do proceder e o merecido
do grau, e, também, palmeassem o saber do examinado.
Foi um duelo, demorado e sensacional de lances, aquele
exame. Mas foi um dez, o dez fora do
comum do Professor Valadares, anota que Rosa obteve
em Geografia.
Aos
dezessete anos incompletos, João Guimarães
Rosa prestou vestibular e matriculou-se na Faculdade
de Medicina de Belo Horizonte. Duas de suas aptidões,
já agora mais notavelmente aperfeiçoadas
e percebidas, destacam-no, desde logo: a memória
em verdade milagrosa, e a facilidade com que aprende
idiomas estrangeiros, aventurando-se até aos
ainda praticamente incogitados. Relativamente à
primeira, afora os muitos testemunhos das espantosas
proezas praticadas no picadeiro da anatomia de Testut,
os contemporâneos de curso médico contam
como ele, devotadíssimo às cadeiras
básicas, mormente Botânica e Zoologia
- às quais se dava esmerada e apaixonadamente
- livrava-se, entretanto, de outras que lhe não
acendiam o interesse; limitava-se a assistir às
provas orais dos colegas, afastando-se da sala ao
chegar sua vez, para não ter de responder à
chamada em ordem alfabética, mas tornando logo
após, pulado o seu nome, para continuar a ouvir
as perguntas dos examinadores e as respostas dos examinandos;
e era o último em apresentar-se à banca,
já senhor do resumo da matéria, suficiente
para boa nota de aprovação. Do segundo
pendor - a queda para o estudo de línguas -
diz, mais objetivamente que o entusiasmo de seus admiradores,
a tradução por ela feita de um trabalho
do Professor Quelle, da Universidade de Bonn, sob
o título A Organização Científica
em Minas Gerais, reproduzida no órgão
oficial do Estado, o Minas Gerais, em 5 de
outubro de 1928, quando o tradutor contava apenas
vinte anos de idade. E já ia bem avançado
no russo, estudado com Miguel Theodorovich Chiquiloff,
intelectual muito conhecido nos meios mineiros, que
assina valioso depoimento vindo a lume em edição
do Suplemento Literário do Minas Gerais.
É
ainda o Professor Chiquiloff quem fala dos habilidosos
métodos mnemônicos inventados pelo seu
aluno de russo. Extraordinariamente bem servido de
retentiva, nem por isso deixava Rosa de obstinar-se
em tê-la cada vez mais disciplinada e ágil,
afirmando freqüentemente ao professor ainda acabar
por descobrir o segredo e as misteriosas regras do
processo mental de memorização. Tantas
e tão maravilhosas demonstrações
deu Guimarães Rosa de sua quase sobre-humana
memória - e mais convincentemente depõem
a extensão e profundidade dos seus conhecimentos
idiomáticos - que não é de todo
exagerado supor-se haja, afinal, atingido a ambiciosa
meta, ou, pelo menos, dela se abeirado, e bastante.
Ainda
estudante de Medicina é que veio Rosa a exercer
seu primeiro emprego público, o de funcionário
do Serviço de Estatística de Minas Gerais,
onde passa a trabalhar com Teixeira de Freitas. Àquela
altura, era moda o esperanto; e Rosa matricula-se
em curso especializado aberto de recém em Belo
Horizonte. Diplomou-se em vinte e sete dias. A uma
das moças da repartição que,
simploriamente, lhe observa nunca imaginar fosse o
esperanto coisinha assim maneira, Rosa deu o risonho
troco:
-"É
muito fácil sim, meu bem. Desde que se saiba
um pouco de espanhol, de francês, inglês,
italiano, do alemão, do russo..."
Demais
do estudo de línguas e Estatística,
organização de herbários e coleções
de insetos - e até de cobras -, Rosa fascina-se
pelo xadrez, aprende-o a fundo, e acaba por sobressair-se
também aí, e brilhantemente. Tempo
e Destino, com o título em grego, Chronos
Kai Anagke - tradução e pronúncia
do nosso eminente Paulo Rónai - o segundo conto
publicado em O Cruzeiro, ainda quando o autor
cursava o quinto ano da Faculdade de Medicna de Belo
Horizonte, é fantástica história
de um jogador de xadrez, ucraniano. E, em "Minha
Gente", um dos contos em primeira pessoa de Sagarana,
é ao xadrez que Guimarães Rosa pede
ajuda para compor as páginas da viagem que
faz, a cavalo, da estaçãozinha de trem-de-ferro
do povoado à fazenda de Tio Emílio.
Arranja, de companheiro, por coincidência de
trajeto, um inspetor escolar itinerante - o Santana
- "cujo fraco e também o seu forte é
o nobre jogo do xadrez"... Fazem
o percurso, de carteirinha de bolso, onde as peças
se atarraxam, passadas de um a outro para os lances
da partida.
Multifário
de inteligência, preciso e competente - assim
definem Guimarães Rosa, à casa dos vinte
anos, professores e colegas de curso, chefes e companheiros
do Serviço de Estatística, e mais pessoas
que o conhecem. Mas reservadíssimo, deveras
impenetrável, mesmo com os mais chegados. Rosa
morou quase sempre em pensão de estudantes,
desde que deixou o internato do Colégio Arnaldo
até pouco antes de formar-se em Medicina; mantiveram
essas pensões, a princípio o avô
Luís Guimarães, em seguida os pais,
Dona Chiquitinha e Florduardo - mudados de Cordisburgo
à época em que o filho se matriculava
na faculdade - e, por último, uma tia-avó,
ainda viva, Dona Petrina Guimarães. Pois mesmo
aos companheiros de pensão, alguns até
de quarto, não confidenciava Rosa seus pensamentos
e intenções, muito menos seus primeiros
titubeios literários.
Por
isso que um fato vem surpreendê-los, a todos.
Foi quando, na muito circulada revista O Cruzeiro,
precedido da declaração "selecionado
em concurso", com ilustrações em
três inteiras páginas de texto, surge
estampado O Mistério de Highmore Hall,
conto de autoria de um João Guimarães
Rosa. Por certo pseudônimo coincidente, talvez
algum homônimo integral, da primeira letra à
última... Seria o preparado e modesto rapaz,
o estudioso quintanista de Medicina... O poliglota
e problemista de xadrez, o capaz funcionário
tão gabado pelo grande Teixeira de Freitas,
o precoce ledor e tradutor de sábios alemães?!...
Logo-logo, porém, desapareceriam as dúvidas,
que o autor se confessa. Era mesmo o talentoso e discreto
estudante de Cordisburgo: era o Guimarães Rosa,
sim.
O
Mistério de Highmore Hall foi publicado
a 7 de dezembro de 1929. Seis meses depois, traz a
revista outro conto de Rosa, também ilustrado,
desta vez com o anúncio: "A MAIS EXTRAORDINÁRIA
HISTÓRIA DO XADREZ JÁ EXPLICADA A ADEPTOS
E NÃO ADEPTOS DO TABULEIRO." A data é
21 de junho de 1930, e o título, já
se disse, vem em grego: "Chronos Kai Anagke".
Três semanas após o segundo, na mesma
revista, um terceiro: Caçadores de Camurças.
Foi este o derradeiro fogo de artifício a espocar
e luzir naquela curta festa de estréia. Com
exceção dos discursos de orador de turma
dos médicos de 1930 e de agradecimento, na
Academia Brasileira, pelo prêmio de poesia concedido
ao volume de poemas Magma - livro que, não
se sabe bem a razão, o autor jamais desejou
ver nas livraria - só muito mais tarde é
que Guimarães Rosa iria ler o seu nome, em
letra de forma, autenticando trabalho literário
de lavra própria: foi dezesseis anos ao diante,
em 1946, ao vir à luz Sagarana.
Paga
a pena ler esses três contos de Guimarães
Rosa saídos ao seu tempo de estudante de Medicina.
Aqui, mal-e-mal pode caber pequena amostra da sua
prosa dos vinte e um anos. Ouçamo-lo em O
Mistério de Highmore Hall:
O
vento batia de rijo o castelo, guinchava,
zunia, assoviava, musicando tons macabros,
como se as ruínas fossem órgão
enorme a ressoar em meio ao fragor da tempestade.
O relampejar repetido de mil coriscos tigrava
a escuridão de rajas e ziguezagues
cor de fogo. E a chuva caía em bátegas
violentas.
Em
Tempo e Destino:
Em
torno da mesa, único móvel
ali existente, erguiam-se candelabros de
bronze, sustentando tochas. E essa iluminação
funérea, derramando-se pelo vasto
aposento, caricaturava sombrias esguias,
como aventesmas. Na circunferência
muito negra da parede decifravam-se pentáculos
e símbolos cabalísticos e
abracadabrantes. Odores intensos de styrax,
incenso e mirra misturavam-se no silêncio
subterrâneo da sala.
E
em Caçadores de Camurças:
Toda
a noite a tempestade chicoteou a montanha. A neve
derramou-se, não em flocos leves, mas em turbilhão,
aos bulcões, rebocando de gelo as trilhas e
desfiladeiros, vestindo de branco o cone dos pinheiros,
enquanto o vendaval esfuziava em rajadas frias, regougando
nas cúspides do fragal.
Ficaram
nos três os contos de O Cruzeiro. Na
citada carta de outubro de 1966, escrita à
moça estudante de Minas Gerais, Guimarães
Rosa não nega paternizá-los, mas faz
questão de os definir: "Mas, escrever,
mesmo, só comecei foi em 1929, com alguns contos,
que, naturalmente, não valem nada."
Novidade
não seja que um escritor, ao alcançar
madureza e fama, repudie, assim categórico,
o resultado do seu verde esforço inaugural.
O pouco habitual e muito estranho, isso sim, é
que o tenha feito na hora mesma de recolher os louros,
vencedor de anunciado concurso público, ao
qual hão de ter corrido não poucos postulantes
à glória do nome impresso e, também,
à nota de cem mil-réis arvorada ao tope
do pau-de-sebo. E ainda: quando crescido de conceito
junto aos professores e colegas de faculdade, que
lhe tributam a homenagem da escolha para orador da
festa de formatura.
O
mais extraordinário, porém, foi ter
Guimarães Rosa encostado a ferramenta, mesmo
sabendo não se lhe ter exaurido a grupiara.
Parou com as histórias inventadas à
força de geografia, gente e fala exótica,
porque convencido de que minerava em errado veio,
certamente já bem desconfiado de que precisava
libertar-se dos cânones muito rígidos,
do termo bateado nos dicionários, da frase-feita
e do raso lugar-comum. Mas ainda ignorante ou indeciso
do jeito de proceder: anos depois é que lhe
empenaria a asa e ganharia alforriar-se desse cativeiro.
Vem
a talho, como exemplo desse desnorteamento que tanto
demorou seu retorno às luzes do palco, o discurso
lido por Guimarães Rosa, orador de sua turma
na solenidade de colação de grau, paraninfada
pelo Professor Samuel Libânio, e realizada na
antiga Câmara dos Deputados, em Belo Horizonte,
a 21 de dezembro de 1930. Transcreve-o, na íntegra,
o Minas Gerais de 22/23 do mesmo mês
e ano. Basta a peroração para que se
avalie a peça inteira:
E
quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos
os agradecimentos e as despedidas dos meus colegas,
eu lamento não poderem falar-vos todos eles
a um tempo, para que sentísseis, na prata das
suas vozes, o oiro de seus corações.
Senhor
Presidente, Senhores Acadêmicos:
Careço
de tudo - da queda à aptidão - para
aventurar-me à análise, ainda que por
alto, da psique e da arte de um mestre do porte de
João Guimarães Rosa. Posso, quando muito,
manifestar a minha incompreensão e ignorância
- e, por isso mesmo, a minha inexplicação
- ao topar tão singularíssimo caso de
transmudamento de inspiração e expressão
artística, arrisco-me a dizer de tão
espantoso exemplo de metempsicose. Com todas as veras,
não sei de nada semelhante ou sequer parecido.
Os primeiros contos do estudante de Medicina não
estão mal feitos - pelo contrário, são
até que muito bem trabalhados, perfeitamente
ao jeito do rigorismo gramatical e do estilo abundante
e vistoso, ainda em muita moda na época; não
resultaram de pueril fantasia, precipitado desejo
de aparecer e brilhar, tampouco aceitos a poder de
pistolão ou de facilidades irmãs, de
igual e feia ordem. Produziu-os, às vésperas
de doutorar-se, um moço de vinte e um anos,
idade em que não é tão de admirar
assim o revelar-se alguém artista, e artista
de apurado timbre. Um jovem, mas jovem intelectualmente
adulto, respeitado pela assiduidade ao livro, escorado
de nada frágil calço humanístico,
e abastecido de boa provisão científica
- roceiro já acostumado de braço, mesmo
para lavourar em culturas estrangeiras. Sua literatura
- e, agora, a indagação: - como deu
conta de refazê-la assim, primeiro começando
por desaprender o aprendido em anos de aturada porfia,
para, depois, reiniciar e reconstituir tudo, e de
modo totalmente irreconhecível, como se fora
labor de outra alma e de outras mãos?
Não
monta a resposta: o incontrastável é
que Guimarães Rosa saiu um e voltou outro à
ribalta. E o que de princípio fez, durante
o entreato, foi trocar de ambiente e de vida, na hora
favorável em que se habilitava em Medicina.
Meteu na mala o Chernoviz e outros competentes guias
da esculápia pau-de-toda-obra, encaixotou os
clássicos, dicionários e gramáticas,
a tralhazinha de recruta na profissão em que
acabara de licenciar-se, o diploma e também
o tabuleiro e os trebelhos do xadrez. Largou o emprego
no Departamento de Estatística, largou o professor
de russo, e partiu de Belo Horizonte para a cidade
do interior onde - alguém lho disse - não
havia médico. Nem trem-de-ferro, tampouco estrada
de rodagem que prestasse. Mas limpo céu, ares
sãos, alegre gente. Itaguara, esse o nome do
lugar.
Hoje,
vai-se a Itaguara pelo macio e veloz asfalto da Fernão
Dias, que liga a capital mineira a São Paulo.
Quem sai de Belo Horizonte, a cerca de duas horas
de viagem, pode enxergar bem lá embaixo - isso
à mão esquerda e se forçar a
vista - ponta-de-rua ou outra da cidadezainha branca,
afundada e meio sumida na paisagem de redondos morros.
Há coisa de quarenta anos, quando Rosa ali
chegou, o caminho era de terra, muito mais comprido,
custoso e lerdo, e o lugarejo não passava de
distrito - apesar de bem dotado, com grupo escolar,
bonitinha igreja, padre local, e afamada festa na
Semana Santa.
Essa
distante fase da vida de João Guimarães
Rosa durou até ao meado de 1932, quando do
levante constitucionalista de São Paulo. Atendendo
à convocação de voluntários
para o Corpo de Saúde da Polícia de
Minas Gerais, Rosa apresenta-se, serve em várias
frentes, e, terminada a revolução, efetiva-se
na milícia. Voltou a Itaguara apenas para despachar
a mudança: fora destacado, já com divisas
de capitão-médico, para integrar a oficialidade
do recém-criado 9.º Batalhão da
Força Pública de Minas Gerais, a instalar-se
em Barbacena.
Não
há de ser fácil condensar a vida de
médico de roça levada por Guimarães
Rosa em Itaguara. Não lhe pegou, aí,
a tísica intelectual de um lugar pobre de fatos
susceptíveis de lhe virem quebrar, vez por
outra que fosse, a pachorrenta atoíce do dia-a-dia.
As novenas e leilões da Semana Santa eram apenas
de ano em ano... E a política, a essa a Revolução
de 1930 havia posto fim; ah, se pelo menos a beleza
de uma eleiçãozinha de arraial, bem
tocada a futrica, cacetada e foguete!... Mas, no caso
de Guimarães Rosa, foi esse período
o mais proveitoso, sem dúvida, para a sua vocação:
o que mais subsidiou, em matéria e forma, a
reconceituação, reestruturação
e refazimento de sua nova arte literária -
essa, sim, original e independente, humosa e robusta,
capaz de se definir e afirmar em transcedência
e perpetuidade. Sua saleta de atendimento clínico
virara consultório e confessionário
ao mesmo tempo, que, a par de lamurioso romaneio das
mazelas, sempre historiazinha ou outra haveria de
render o cliente. As viagens - de infalível
a cavalo - às fazendas e corrutelas de sua
paróquia médica, aproveitava-as Rosa
como rendoso campo de observação: gente,
bichos, plantas - um novo mundo ainda muito mal explorado
pela vasqueira e medrosa literatura daquela época,
desestudado em sua essência e pormenor. A própria
povoação, que opulência de humanidade,
quanta malícia e graça no diz-que-diz
do comadrio, quanta novidade e variedade de temas
haveria o psicólogo de então recolher,
e o escritor de amanhã universalizar com sua
caprichada pena?! Guimarães Rosa anotava tudo,
não só de memória, mas, e principalmente,
nas suas famosas cadernetas. Antigos vizinhos e freqüentadores
de sua casa - muitos ainda moradores em Itaguara -
contam como ficava ele, noite fora, a lidar com seus
misteriosos apontamentos, ou a estudar - o que de
mais estranho se lhes afigurava - em seus grossos
e demorados dicionários. As anotações
resultaram em abastado glossário sertanejo,
verdadeiro léxico enciclopédico de todo
um novo vocabulário e gramática, de
uma nova história natural e antropologia, e
tudo rigorosamente autêntico, fiel ao visto
e ouvido. Não tivesse Guimarães Rosa
acumulado esse minucioso e exato pé-de-meia,
ser-lhe-ia impossível levar a cabo a estendida
e densa obra de arte que foi o seu importantíssimo
legado.
Um
pesquisador de gosto, sem preguiça nem pressa,
muito irá descobrir, na cidade mineira de Itaguara,
de curiosa informação a respeito do
que Guimarães Rosa fez e também recolheu
em experiência e em aquisição
de conhecimentos de vária ordem.
Atualmente,
Itaguara é bem outra. Emancipou-se, passando
de distrito a município, calçou-se de
liso e limpo paralelepípedo, construiu muita
casa nova, erigiu vistosa igreja em centro de jardim
- jardim zelado a mão de moça, as moças
que tanto ajudam o vigário no pastoreio da
criançada local - fundou mais escolas e seu
ginásio noturno, o ai-jesus da cidade. Itaguara
de hoje é uma simpatia de terrazinha, e o povo,
afetuoso e prestadio, continua sendo do melhor; e
duro de envelhecer, e agudo de memória, que
são numerosas as pessoas que se recordam, perfeitamente,
do seu doutorzinho amável, dia a dia pior da
vista, mas risonho sempre, pronto sempre para acudir
aos chamados de socorro médico, andasse bom
ou andasse mau o tempo, fosse lá a que horas
fosse. Porém manhoso, perguntador, especula
por demais da conta - essa a voz geral dos informantes
- infalivelmente armado da terrível cadernetinha,
a querer saber de tudo, para de tudo aprender e registrar.
Dessa
mania dos apontamentos e do estudo já se falou
e refalou; de como saía à cata de cogumelos
e caramujos para ele mesmo temperar e comer, seria
aqui ociosa, se não inadequada, a referência
- o mesmo ocorrendo com respeito à criação
de abelhas e de toda espécie de aves de quintal;
da prosa na botica em frente e das primeiras lições
de xadrez ao padre e ao farmacêutico - isso
nos curtos momentos de folga que lhe concediam o consultório,
as viagens a cavalo e os livros - há de ser,
por óbvia, desnecessária a menção.
O que de mais substancial e mais estimável
convém investigar será a copiosa contribuição
que Itaguara ofereceu ao escritor - em assunto, linguagem,
em figuras humanas e outras criações
da natureza, em rústico cenário e tudo
o mais - em resumo e afinal, o complexo de recursos
com os quais pôde Guimarães Rosa edificar,
à sua maneira, um mundo todo seu, o universo
de sua ficção personalíssima.
"Traços
Biográficos de Lalino Salãthiel ou A
Volta do Marido Pródigo", por ordem o
segundo conto de Sagarana, assim Guimarães
Rosa titula uma história, cuja principal personagem
ele conheceu pessoalmente - o mulatinho descaradíssimo,
ágil de andar, sestroso e falante, peão
de picareta em trecho de construção
da rodovia Belo Horizonte-São Paulo, nas imediações
de Itaguara, na ocasião em que o doutorzinho
de óculos e comedor de caramujo lá clinicava.
Ambiência, tema, e demais figurantes além
do vivo Lalino Salãthiel - tudo, também,
material ali recolhido. Seu Marra - o bondoso Seu
Marrinha da história - Seu Marra, feitor real,
de carne e osso, do grupo de picareteiros a que pertence
o maneiroso Lalino - nem o nome dele, a condição
de fiscal na construção da rodageira,
tampouco a paixão por teatrinhos e pantominas
Guimarães Rosa deixou de utilizar. Seu Marrinha,
que mora hoje em dia em Belo Horizonte - o nome completo
é José Benjamin Marra - relata como
o doutor ia, em horas livres, assistir ao vaivém
das carrocinhas de burro do aterro e puxar conversa
com os braçais da estrada. A tentação
é muito forte para que se possa a ela resistir;
ouçamos Guimarães Rosa:
Nove
horas e trinta. Um cincerro tilinta. É um burrinho,
que vem sozinho, puxando o carroção.
Patas em marcha matemática, andar consciencioso
e macio, ele chega, de sobremão.
"Sarapalha",
o terceiro e comovente conto de Sagarana, origina-se
de uma visita médica de Guimarães Rosa
a um comerciozinho das margens do Pará, rio
que nasce nas imediações de Itaguara.
Assim é aquarelado, com tristonhas tintas,
o moribundo lugarejo:
Tapera
de arraial. Ali, na beira do rio Pará,
deixaram largado um povo inteiro: três
vendinhas, o chalé e o cemitério;
e a rua, sozinha e comprida, que agora nem
mais é uma estrada, de tanto que
o mato a entupiu. Ao redor, bons pastos,
boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar
já esteve nos mapas, muito antes
da malária chegar.
Popularíssimo
tipo de Itaguara, engraçado poeta de rua, brigão
e permanente glosador da vidinha caiçara do
povoado - "Aretino de arraial", como Guimarães
Rosa o apelida e imortaliza - reaparece com o literal
nome e a veia bocagiana, no belo conto de feitiçaria
"São Marcos". Rosa copia-lhe uma
das quadras:
Essa
história de phonética
eu
nunca pude entendê!
É
tão feio se assiná
Manuel
Baptista sem P!
Ainda
em Sagarana, no conto "Duelo", trágico
equívoco - um desinfeliz, morto a tocaia por
causa da grande semelhança com o irmão,
esse, sim, a jurada vítima - fato ocorrido
e ainda não esquecido em Itaguara, é
o que inspira o escritor na intriga dos motivos, na
reinvenção da espera homicida e na bem
construída busca do vingador atrás do
assassino em fuga, obsessão que termina em
imprevisto e emocionante desfecho.
Basta
de referências e transcrições:
seriam intermináveis, mesmo que se usasse,
por fonte única, o livro de contos Sagarana.
Um fato marcadamente de tragicomédia merece,
todavia, ser aqui lembrado. Foi o súbito aparecimento,
em Itaguara, de um pobre louco, esfarrapado, de cabeleira
e barba desgrenhadamente crescidas, olhos alucinados,
a carregar e a sacudir, aos brados, pesada cruz feita
de dois galhos de pau atados a cipó. O fantasma
- provavelmente um padre ou ex-seminarista endoidecido,
porque temperava de algum latim a imprecação
inconseqüente - pregava o fim do mundo, invectivando
as mulheres e mais gente aterrorada, e chegou a invadir
a igreja, investindo com a perigosa cruz e pondo a
correr o cura e quem mais se encontrava lá
por dentro. Pois bem: o Dr. Rosa não se despregou
um instante do profeta maltrapilho - e de caderneta
e lápis! - a anotar-lhe a furiosa fala todo
o tempo em que ficou a espaventar o povo do arraial,
acompanhando-o até bem fora dele, quando a
assombração se dispôs a ir anunciar
o apocalipse mais ao diante. É em "Recado
do Morro", a quarta novela de Corpo de Baile,
que reaparece o orate, rebatizado várias vezes
pelo escritor: Nominedômine, ou Nomemdome, ou
Santos-Óleos, ou ainda Jubileu... Escreve Guimarães
Rosa, em uma das cenas em que entra o desmiolado peregrino:
Estafermo
mesmo assim, arava o passo, pernas tantas,
até cada fim de rua, e retornava,
estroso, ardente, cachorro caçado,
sete fôlegos. Abria o peito:-É
a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo...
Arreúnam, todos, e me escutem, que
o fim do mundo está pendurando! Siso,
que minha prédica é curta,
tenho que muito ir e converter...
Alguém
que alcança abordar o desatinado e merecer
dele atenção e resposta - quem sabe
se não o próprio Dr. Rosa, quando o
seguia, fascinado, pelas ruas de Itaguara? - escuta
o seguinte:
-
Sua pergunta é do rogo da fé,
e não da carne, não moço.
O senhor é homem gentil, tem galardão!
Tem galardão... Mas eu sou o zerinho
zero, mal-e-mal uma humilde criatura do
Senhor: eu nem sou a Voz... Vinde, povo:
senvergonhas, pecadores, homens e mulheres,
todos. Todos eu amo, vim por vosso serviço,
Deus enviou por mim, ele requer o vosso
remimento. Dele tenho o praz-me. Olha o
aviso; evém o fim do mundo em fogo,
fogo, fogo! O mundo já começou
a se acabar, e vós semprando na safadeza,
na goiosa! Contraforma! Contraforma! Olha
enquanto-é-tempo... Vamos, vamos:
pra igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papa!
Aqui-del-presidente!" Desabalou de
vez, olho na rua a longe, quase correndo,
feito pulando rego, tinha de alargar também
as pernas-aqueles rolos de pano nos pés
dele foiçavam porção
de poeira.
Corpo
de Baile, Grande Sertão: Veredas, Primeiras
Estórias e Tutaméia - os livros
de Guimarães Rosa que se seguiram a Sagarana
- estão povoados de gente assim, a mor
parte escolhida no rol de criaturas conhecidas, pessoalmente
ou por informação, durante a temporada
que passou em seu arruadozinho de médico noviço.
Os curiosos de saber de que pele Guimarães
Rosa vestiu a inesquecível figura do compadre
Quelemém, de Grande Sertão: Veredas
- "Quelemém de Góis, da Jijuã,
Vereda do Buriti Pardo..." - talvez encontrem
resposta em Itaguara. Mas é preciso que se
vá a um grotão enfurnado entre morros,
lugar conhecido por Sarandi, de muitas fazendas parentes.
Uma delas chama-se O Mambre - "morada, seio de
Abrão", o dono explica. A graça
do fazendeiro é Manuel Rodrigues de Carvalho,
de todos conhecido por Seu Nequinha. Espírita,
estimado e ótimo remedista, foi ele - o próprio
é quem diz - quem bastante acompanhou e bastante
adjutorou o Dr. Rosa em seus primeiros chamados e
aflições médicas. Anda o Nequinha,
coitado, é mas é meio perrengue, de
cama; tira ânimo e proveito, porém, da
forçada permanência no catre, lendo Allan
Kardec e o Chico Xavier, afora romances que manda
comprar ou lhe levam de presente. A professora Maria
Geralda Costa, simpaticíssima, encantadora
hospedeira e cicerone de Itaguara - amável,
expedita e danada de inteligente - Maria Geralda pôr-se-á
pronta, como de igual há de fazê-lo relativamente
às outras pessoas que se lembram do Dr. João
Guimarães Rosa, para acompanhar ao Sarandi
e à Fazenda do Mambre os desejosos de conversar,
ouvir o repertório, e - por que não
fazer render a visita? - tirar também excelente
receita e muito bons conselhos com o velho, lido e
suave Seu Nequinha.
O
que se não pode mais, lamentavelmente, é
ver a casa onde morou e clinicou o escritor, porque
já de muito a desmancharam. Casa de quintal
e porão, onde - dizem lá por Itaguara
- Rosa hospedava bandos de ciganos que, àquela
época, tanto percorriam as cidadezinhas rurais:
"sempre gostei de estrangeiro"... - confessa
Guimarães Rosa, por boca de Riobaldo, em passo
de Grande Sertão: Veredas. O conhecimento
que exibe da vida errática e do linguajar cigano
- fielmente fixado no conto "Corpo Fechado",
em relato autobiográfico do pulha mas artimanhoso
Mané Fulô - e mais aqui e ali no restante
da obra literária de Guimarães Rosa,
deve-o o novelista às pacientes horas passadas
na convivência com os calões acampados
no porão e quintal da casa de Itaguara, aprendendo
com eles a gíria arrevesada, as histórias
de um viagear aventureiro e sem parada, as tretas
no consertar e mercar tachos de cobre, e, especialmente,
no pândego passar a perna à caipirada,
invencíveis que sempre foram, os finórios
dos ciganos, em tramas de cavalos e quejandas malas-artes.
O
capitão-médico João Guimarães
Rosa chegou a Barbacena no dia 3 de abril de 1933.
Data de grande festa: todo o povo comparecera à
estação da Central do Brasil a assistir
ao desembarque do 9.º Batalhão de Infantaria
da Força Pública de Minas Gerais, que
vinha para aquartelar-se em definitivo.
O
frescor do clima, os diversos trens diários
da Central do Brasil, a proximidade com o Rio de Janeiro
e Belo Horizonte - essas vantagens, facilidades e
recursos, faziam de Barbacena, já àquele
tempo, uma das mais populosas e adiantadas cidades
mineiras. O quartel pouco exigia de Guimarães
Rosa - quase que somente a revista médica rotineira,
sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram
o pão-nosso da clínica em Itaguara,
e solenidade ou outra, em dia cívico, quando
o escolhiam para orador da corporação
- sobrando-lhe prazo para a ocupação
a que, desde rapazinho, se vinha dando fervorosamente:
o aprendizado de idiomas estrangeiros.
Escreveu
a Chiquiloff - seu amigo professor de Belo Horizonte
- pedindo livros e mais material de estudo em língua
russa; descobriu e passou a cultivar amizade com famílias
alemãs para o treinamento de conversação,
e iniciou-se em japonês com um Sr. Númia,
floricultor local. O francês, aperfeiçoava-o
com o poeta barbacenense Honório Armond, e
com o Dr. Doux, presidente do Clube Comercial, ponto
de reunião de boa sociedade dada às
letras, freqüentado por Rosa, que ali fora encontrar,
além de inteligentes serões, alguns
parceiros de xadrez.
A
exata notícia que se tem de uma próxima
e total mudança de vida - não se sabe
se plano secreto e pacientemente preparado, se fortuita
inspiração - transmite-a Guimarães
Rosa a um ex-companheiro de pensão e de faculdade
ficado em Belo Horizonte - um quase-irmão com
quem carteia assíduo e muito íntimo
- o Dr. Pedro Moreira Barbosa. Em bilhete dirigido
a esse amigo diletíssimo, datado de 10 de março
de 1934 - menos de um ano, portanto, de permanência
no quartel de Barbacena - Rosa prepara-lhe o espírito
para séria revelação. Escreve:
Como
nunca é bom ficar-se estacionário, já
concebi novos planos, desta vez bem mais grandiosos
que os de costume, e que surpreenderão muito
a você, quando lhos revelar. Por enquanto, só
digo que pretendo deslocar-me, muito brevemente, para
o Rio de Janeiro...
Dez
dias depois, a 20 de março, em agora longa
e pormenorizada carta:
...se
você puder, procure obter para mim, ou com os
empregados da Faculdade de Direito ou com algum aluno
da mesma, a coleção ou série
completa dos Pontos de Direito Internacional Público,
síntese das aulas do Professor Alberto Deodato,
prelecionadas para o 3.º ano...
E,
mais adiante, abre o coração:
Lembro-me
de ter dito a você, parece-me que
em Itaguara, que me achava decepcionado
com a realidade da Medicina, sentindo até
algum arrependimento por não ter
estudado Direito, carreira que então
já me aparecia como mais compatível
com o meu temperamento e com as minhas fracas
aptidões...
Em
outro tópico da carta, prossegue Guimarães
Rosa:
Não
nasci para isso, penso. Não é
esta, digo como dizia Don Juan, sempre "aprés
avoir couché avec..." Primeiramente,
repugna-me qualquer trabalho material-só
posso agir satisfeito no terreno das teorias,
dos textos, do raciocínio puro, dos
subjetivismos. Sou um jogador de xadrez-nunca
pude, por exemplo, com o bilhar ou com o
futebol...
Mas
adiante, após o desabafo, confessa a aspiração
que o empolgava:
Talvez
eu esteja exagerando nas cores, mas o que é
certo é que hoje toda a minha admiração,
fervente, entusiástica, irrestrita, se voltou
para outra carreira, a mais nobre e distinta de todas,
a mais selecionada, a de mais difícil acesso,
talvez-a DIPLOMACIA.
Pedro
Moreira Barbosa manda o que Rosa quer - as aulas do
Professor Alberto Deodato - e, cinco meses depois,
a 13 de agosto, recebe a comunicação
do êxito do amigo no concurso a que se submeteu
no Itamarati para ingresso na carreira diplomática.
A importância que dá Guimarães
Rosa ao fato leva-o a escrever:
Terminei
o primeiro capítulo do 2.º volume da minha
vida...
E
acrescenta, no final da carta:
Penso
que encontrei ainda o tempo a minha verdadeira vocação.
Pretendo seguir o curso de Direito, especializar-me
em Direito Internacional e em línguas eslavas,
escrever alguns livros de literatura e ver o mundo
lá fora.
É
a primeira vez, após quatro anos da publicação
de "Caçadores de Camurças",
terceiro e último conto de Guimarães
Rosa na revista O Cruzeiro, que volta ele a
manifestar interesse pela ficção, anunciando
o propósito de "escrever alguns livros
de literatura". Vê-se - apesar da corrida
menção que deixa escapar desse objetivo,
misturado com aspirações outras e bem
diversas - que as cadernetas de Itaguara mais as informações
colhidas no quartel de Barbacena sobre o jaguncismo
barranqueiro do rio São Francisco, tudo era
material armazenado para consciente e perseguido fim.
Mas, nenhuma precipitação: dois anos
depois é que resolveria pôr-se à
prova, concorrendo ao Prêmio de Poesia da Academia
Brasileira de Letras com Magma, o volumezinho
de versos. Conquista o primeiro lugar, mêrce
de elogioso parecer de Guilherme de Almeida - não
apenas entusiástico relativamente ao candidato
vencedor, mas bastante pessimista e até que
severo com respeito aos mais concorrentes, pois nem
um "aproximador segundo prêmio" admite
o relator seja concedido... - e, entretanto, a vitória
ainda não satisfaz a Guimarães Rosa.
Recebe o prêmio, discursa nesta Casa quando
lho entregam em sessão solene, mas não
manda à estampa Magma. Um ano depois,
por ocasião do lançamento do Prêmio
Humberto de Campos pela Livraria José Olympio
Editora, Rosa põe novamente de fora a garra,
para ver como ele andava: inscreve-se candidato ao
prêmio, agora com o pseudônimo de "Viator",
apresentando livro de contos. Alcança o segundo
lugar, provoca os protestos de Marques Rebelo, um
dos membros da comissão julgadora, porque este
considerava o trabalho de "Viator" merecedor
da primeira classificação, e... desaparece,
inidentificado!
O
que acaba de dizer-se principia a repetir história
conhecida, como já e mais conhecido passa a
ser Guimarães Rosa, a partir de sua entrada,
mediante brilhantíssimo concurso, no Ministério
das Relações Exteriores. Quanto à
vida diplomática, hão de ser muitas
e bem explícitas as informações
do Itamarati, arquivadas em pasta funcionária,
e nada difíceis de obter, igualmente, abundantes
depoimentos com os colegas de carreira. Depois da
atoarda produzida por Sagarana, publicado nove
anos após o julgamento do Prêmio Humberto
de Campos, aí é que, posto em foco pelo
entusiasmo da crítica e interesse dos leitores,
bem mais fácil se tornará a tarefa perquisidora
dos biógrafos de Guimarães Rosa.
De
ajuda a esses estudiosos, pouco, ou quase nada, posso
a mais oferecer - se de alguma valia tem sido, até
aqui, meu empenho colaborador. Creio, entretanto,
ser de vantagem a indicação das cartas
escritas por Guimarães Rosa ao amigo Dr. Pedro
Moreira Barbosa, hoje importante homem de indústria
tecelã, residente em Belo Horizonte. Assinadas
pelo primeiro, guarda o segundo cerca de cem cartas,
a mais antiga datada de 10 de março de 1934,
a mais recente escrita em 11 de julho de 1967, quatro
meses antes do desaparecimento do escritor. Extremada
afeição ou milagrosa presciência
da culminância a que se altearia o ex-colega
de pensão e de faculdade, o que importa é
o haver o Dr. Barbosa conservado consigo, trancado
no cofre, o precioso pecúlio, amealhado em
trinta e três anos de amizade e confiança.
Para
que se tenha idéia da fartura de subsídios
extraíveis dessa correspondência, vai
aqui a transcrição de um pedido de Guimarães
Rosa ao amigo de Belo Horizonte, em carta remetida
de Paris em 19 de julho de 1949. Antes, porém,
curta explicação: havia, nas Pindaíbas,
fazenda dos pais de Pedro Barbosa, em Paraopeba -
lugar a que Rosa, ao tempo de estudante, costumava
ir com o colega de faculdade - vivia lá um
empregado, de nome Hermenegildo, alcunhado de Mechéu,
cujo serviço era cuidar do quintal e dos porcos,
rachar lenha, ajudar na cozinha, levar comida para
as turmas da lavoura...: o perfeito modelo do tradicional
e indefectível peão caseiro e quintaleiro
- típica personagem de qualquer história
campestre. De Paris, vinte anos depois de o ter conhecido,
Guimarães Rosa lembra-se do Mechéu,
precisado dele para um de seus contos - e é
em Tumatéia, o último livro de
Rosa, que irá aparecer o zelador de porcos
das Pindaíbas - e manda buscar-lhe a ficha
completa. Eis o que pede Rosa ao Dr. Pedro:
...
Mas, meu velho, antes que eu me esqueça,
acuda aqui ao seu parente. Estou, afinal,
pondo em papel a biografia romanceada do
grande MECHÉU, e preciso, sem falta,
de mais alguns dados. Por amor-de-Deus,
mande-me, pois, o seguinte:
"I
Como era, mais ou menos, a fisionomia
dele?
A
expressão?
O
aspecto?
(Sei
que era alto e magro, mas gostaria de saber
também o formato da cabeça,
cabelos, se tinha pescoço fino ou
grosso, cor e tamanho dos olhos, barba ou
não barba, cor da pele, formato das
orelhas, e outras peculiaridades que ocorram.)
"II
Que fazia ele, em geral, à
tarde, acabado seu serviço?
"III
Além de tratar dos porcos,
preparar a bóia suína na masseira,
levar comida à roça, para
as camaradas, tinha ele mais algum serviço?
"IV
E aos domingos, que fazia?
"V
Era religioso? Supersticioso?
"VI
Andava descalço?
"VII
E em matéria de vestir-se?
Que
chapéu usava, por exemplo?
Gostaria
de vestir roupa velha que vocês lhe
dessem?
"VIII
Tinha algum modo especial de caminhar?
"IX
Dedicava alguma especial inimizade
aos cachorros? Maltratava os animais?
"X
Que coisas gostava mais de comer?
Gostava
de cachaça?
"XI
Na fala: gaguejava? Ria muito ou
pouco?
Que
é que lhe dava mais raiva?
"Nada
de preguiça, oh Peréra! Forneça-me
isto e mais alguma coisa marcante ou engraçada,
que lhe vier à lembrança sobre
o inolvidável Hermenegildo. Recorra
também ao nosso Américo. E
eu bendirei mais uma vez o pronto e eficaz
auxílio (que dá sorte). Você
está lembrado do questionário
sobre as vozes de comando do
carreiro, com o qual você me espanou
a memória, para o Sagarana?"
Assim
trabalhava Guimarães Rosa. Não lhe bastava
a memória pronta, tampouco a recheada capanga
das suas cadernetinhas de apontamentos. Gostava de
conferir e reconferir tudo, distribuindo questionários
- escrevendo ao pai, parentes e amigos, em permanente
e preocupada busca: as figuras que decidia admitir
em seu mundo novelesco, e o cenário onde as
colocar - nada podia carecer de ser exato.
Quando
se dispõe a partir para a estupenda aventura
de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas,
Guimarães Rosa não o faz sem antecipada
e até que exagerada preparação.
Material sobrava-lhe - a colheita de Itaguara e do
quartel de Barbacena, e mais os questionários
respondidos por informantes de confiança. A
pena de escrever, essa, Rosa, já a tinha afiadíssima.
Mas sabia faltar-lhe, ainda, o essencial: o reconvívio
com seu pago e sua gente, de tudo apartado pelos muitos
anos de exercício diplomático no exterior.
E precisava também de ver, com olhos próprios,
nem que fosse o começozinho do sertão
de suas fantasias de criança, os descampados
sem fim que principiavam além, muito além
- tombada dos morros de Cordisburgo - lá onde
iam e de onde vinham os forasteiros apeados do trem
para o almoço ou o jantar no Hotel da Nhatina:
a terra das sangrentas correrias de Indalécio,
Rotílio Manduca e Antonio Dó, o palco
em que sonhava encenar a epopéia do amor de
Riobaldo e Diadorim, e da eterna e terrível
batalha de Deus e do Demônio.
Chico
Moreira, velho amigo e meio-parente seu, de Cordisburgo,
programa-lhe a viagem. Por terra, a cavalo, coisa
de uns dez ou doze dias, cinqüenta léguas
de estrada boiadeira, em trecho bem escolhido do antigo
caminho por onde descia o gado curraleiro dos campos
gerais - do São Francisco. Isso, em 1952. Chegado
havia pouco de Paris, com quarenta e quatro anos de
idade, ministro-conselheiro e chefe de gabinete do
Ministro de Estado, Guimarães Rosa enfia o
gibão de couro, calça espora, e, tal
e qual um peão-de-gado comum, inclusive na
comitiva que o aguardava na Fazenda da Sirga - camaradagem,
tropa e trezentas e poucas reses - no lugarejo de
Andrequicé, às margens do rio São
Francisco.
Zito
- João Henrique Ribeiro é seu nome de
batismo - cozinheiro da comitiva, passa horas contando
casos e mais casos dessa viagem. É ainda moço,
e muito esperto e muito falador. Zito pode ser encontrado
em uma furna enfeitada de bonita vereda de buritis,
fresco lugar chamado Barroca, pertinho da recente
represa de Três Marias. Não se esquece
do novato que lhe arranjara o patrão Chico
Moreira, do camarada de caderneta pendurada ao pescoço
por alçazinha de barbante, a caçar assunto,
ora com um, ora com outro cavaleiro... O doutor acaba
por arrancar - refere Zito - de todos os companheiros
de viagem, o que muito bem quer: do Manuelzão,
o capataz, desde meninote a tanger boiada pelo sertão
do São Francisco, anota-lhe, tintim por tintim,
a aventurosa vida - tão bem aproveitada em
"Uma Estória de Amor", de Corpo
de Baile; do Bindóia, cantador de modas,
o inteirinho repertório; do Santana, do Gregório,
do Sebastião de Jesus...
Zito
fala com saudade do Dr. Rosa. Conta como o pobre suportou,
sem queixa, a dura peripécia: à noite
- a viagem ocorreu em friíssima quadra do mês
de maio! - era o derradeiro a ir dormir, ocupado em
pôr ordem nas anotações do dia,
óculos muito chegados ao papel, à luz
ruim da lamparina. Foi assim nas Toldas, no Catatau,
Riacho das Vacas, Fazenda Santa Catarina, Meleiro,
Retiro dos Brabos, Barreiro do Mato, nas Tabocas,
na Taboquinha... Dez pousos, em rebaixas de chiqueiro,
em devassados paióis, até de simples
pelego estendido ao pé do apaga-não-apaga
foguinho do acampamento.
De
Araçaí, onde Manuelzão entregou
a boiada ao Chico Moreira, Guimarães Rosa seguir
para Cordisburgo.
A
estaçãozinha é a mesma, o mesmo
é o letreiro do oitão achalezado: "DISTÂNCIA:
743.467 ALTITUDE: 664.000". Os morros,
muitos já pelados do mato, mas acolá
estava, acaçapado entre eles, o telhadão
enferrujado da Fazenda do Brito Velho. A casa da esquina
da Rua de Cima com o beco... - ah, haviam-lhe tirado
o alpendrezinho da esquerda da fachada, trocado por
uma segunda janela uma das cinco portas da venda!...
E tinham mexido no acrescente da cozinha e no muro
de pedra solta, derrubado o jenipapeiro...
Como
poderia Guimarães Rosa escrever "Campo
Geral" se não houvesse regressado àquele
tempo? Se, ao deixar a casa, que já não
era a sua, não tivesse vivido de novo, olhos
fechados para sofrê-la fundamente, a cena da
despedida, menino outra vez, agarrado à mão
do avô, na hora de tomar o trem para ir estudar
na escola de Belo Horizonte?
Frei
Esteves, Mestre Candinho, os vizinhos e fregueses
da Venda do Florduardo, o inseparável amigo
de infância Juca Bananeira. A Mãe, Tio
Cândido, a criançadazinha, os cachorros,
o papagaio. O Pai, esse precisava de disfarçar
as lágrimas: " - Sempre alegre, Miguilim...
Sempre alegre, Miguilim..." Trinta e seis anos,
e tudo reponta, inteiro e latejante, na página
final da "estória de Miguilim":
Nem
sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava.
A Rosa punha-lhe doces-de-leite nas algibeiras, para
a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava.
Senhoras
e senhores:
Confesso-vos
que me sinto, agora, ao ter de cerrar-me, tal como
me sentia, não faz muito tempo, ao dar por
findo o improvisado serviço de peão
alongador, saído a bater os passos do grande
Mestre. Convencido do muito que tentei, mas certo,
por outra parte, do pouco que logrei. A esperança
de algum proveito são as marcas que ficaram
à borda dos trilheiros: esses galhos quebrados
de árvore e esses talhos a facão que
é costume fazer nos troncos mais à vista.
Ao menos de referência, hão de servir
para alheias e mais úteis caminhadas.
À
minha despedida, permiti-me manifestar a orgulhosa
satisfação de minha cidade, em-antes
sertaneja como o era a cidadezinha serrana de João
Guimarães Rosa: Monte Carmelo, minha terra,
que, aqui, veio alinhar-se ao lado de Cordisburgo,
ao lado da gaúcha Cachoeira, de João
Neves da Fontoura, ao lado também da maranhense
Caxias, de Coelho Netto. É o Brasil interiorano
- genuíno de nascença e vibração
- a ocupar, sem quebra de continuidade, a cadeira
de Álvares de Azevedo, tradição
que esta Casa houve por bem manter.
São
Paulo é quem virá saudar, por procuração
desta Academia, o quarto ocupante da cadeira cujo
patrono é também um paulista. Nós,
os mineiros do Triângulo, gratamente cultivamos
as boas relações de vizinhança
e convivência com São Paulo, filhos de
quem já fomos, no passado. Cândido Mota
Filho, amigo muito querido, falar-me-á ao coração
de forma especialíssima. Das mãos de
Múcio Leão - prestigiosas mãos
que tanto me ajudaram a chegar até a esta Casa
- receberei o Colar Acadêmico, o que, também,
sobremaneira, me comove.
Senhor
Presidente, Senhores Acadêmicos:
Uma
vez - já faz muito tempo - Guimarães
Rosa ajustou comigo uma viagem de avião ao
sertão urucuiano. Declarou-me, então,
precisar de conhecer, de pelo menos sobrevoar baixinho,
seguindo-o volta por volta, croa por croa, o seu sonhado
Urucuia: comprido e calado de águas - o verde,
o azul rio de suas histórias. Bom seria se
pudéssemos aterrisar - pediu Rosa - nem que
fosse apenas para "molhar as mãos, o rosto,
beber um gole de água..." Eu costumava
ir a uma fazenda urucuiana, bem à beira do
rio, onde a gente podia descer de teco-teco. Levá-lo-ia
até lá, sim, à hora em que o
desejasse...
Ao
ler, recentemente, as cartas por ele escritas ao seu
amigo Dr. Pedro Moreira Barbosa, em uma delas, datada
de 8 de agosto de 1956, encontrei a seguinte referência
ao passeio concertado:
E,
para agora, estou tentado por uma excursão
ao sertão, ao Alto Urucuia, com o Deputado
Mário Palmério; mas será via
Uberaba, ainda dessa vez Belo Horizonte ficará
ao largo e ao longe...
Mas
o tempo foi-se escoando, escoou-se, e Rosa ficou sem
ter ido ver o seu rio.
Fui
eu, então, pois algo dentro de mim teimava
em garantir haver ainda jeito de cumprir o combinado.
Levantei vôo, e, sozinha, a bússola procurou
o norte exato, o justo rumo de Cordisburgo... Sim
Rosa estava ao meu lado, viajava comigo. Passei-lhe
os comandos - o mancho e os pedais - e foi ele quem
dirigiu o avião o tempo todo. E sempre e sempre
para o norte: Curvelo, Corinto, Pirapora, o rio São
Francisco. Vila de Paracatu, São Romão,
depois - Vila Risonha de São Romão -,
logo em seguida a barra do Urucuia. "É
verde, é azul... é azul, é verde..."
- eu o ouvi, então, a ele, Rosa, cantar o refrão
das araras do seu Grande Sertão: Veredas.
É verde, é azul, é azul, é
verde... - sim, foi uma bela viagem: a viagem de pausa,
de maravilha e de saudade.
MEU
CARO GUIMARÃES ROSA:
Deus
nos permitiu, a ambos, realizássemos
o velho desejo: você pôde matar
a vontade, pude eu pagar a promessa. E muito,
muito obrigado, por me haver acompanhado
até aqui.
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