Discurso
de posse de Tarciso Padilla na Academia Brasileira
de Letras, pronunciada em 13 de junho de 1997.
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Sítio
da ABL
Tarciso
Padilla é o sucessor de Mário
Palmério na Cadeira n. 2 da Academia
Brasileira de Letras
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MÁRIO
PALMÉRIO
O
ofício de escrever usualmente se nos impõe
de modo imperativo desde os albores da mocidade, vincando
o nosso espírito a ponto de aprisioná-lo
de modo definitivo. E, à medida que o tempo
passa, a sensibilidade vai apurando o dizer. O aprimoramento
resgata uma espécie de sabedoria congênita
que proveio da vocação. É excepcional
o caso dos que amadureceram para as letras na absoluta
solidão, sem a experiência de transpor
para o papel sedutor as palavras com que transferiram
a outrem as suas vivências.
Como
Pedro Nava, Mário Palmério principiou
pelo fim. Nasceu feito. Acabado. O noviciado sequer
começou e a ordenação a todos
surpreendeu. O primeiro livro já surgiu com
o reconhecimento de seu valor. Como obra-prima, e
ainda com a novidade do romance eleitoral, na avaliação
de Wilson Martins.
Mineiro
do Triângulo, Palmério se adentrou no
Brasil real, que insistiu em conhecer como poucos.
Sua aventura amazônica tem sabor ciclópico.
É tentativa de ver pelo avesso e conferir a
grandeza do desafio que teima em se afirmar ante indesejável
pressão externa. Como não perceber em
Palmério, como antes em Euclides da Cunha,
na ânsia de penetrar na profundidade geográfica
do mistério, o desejo de confrontar a pequenez
humana com as águas e as terras que nos falam
dos espaços sem limites? Pascal sentenciou:
"O silêncio dos espaços infinitos
me aterroriza." Em Mário Palmério,
o efeito do comércio fraterno com o espaço
grandioso foi inverso: sentiu-se atraído e
não temeroso de arrostar o mundo ignoto e misterioso.
Dois
mineiros, Guimarães Rosa e Mário Palmério.
O primeiro é escritor pela graça de
Deus. Simplesmente não lhe sobejava um palmo
decisório na contracorrente de seu múnus
natural. Daí o isolamento e aprofundamento
de seu ser. Mário Palmério revela pendor
marcante para o convívio e para a ação.
Guimarães Rosa vislumbra no conhecimento uma
forma de ação, a ação
da inteligência. Isso porque não se sentia
atraído por qualquer forma de dispersão.
Mário Palmério se lança com ímpeto
quase juvenil a empreendimentos concretos a serem
implantados na terra dos homens.
Palmério
se afirmava nas suas realizações. Sorveu
a vida mais na concretude do agir do que na penumbra
do pensar. As cores berrantes do real lhe falavam
mais diretamente ao espírito do que o lusco-fusco
em que se detêm e, por vezes, se enredam as
inteligências e sensibilidades sequiosas do
silêncio interior. Do silêncio que opera
o milagre da criação.
As
duas vertentes da mineiridade literária reafirmam
a fecundidade da alma dos patrícios que, das
Alterosas, ganharam o País com a riqueza de
seu legado. E, hoje, alegra-nos o ensejo de entremostrar
nos dois exemplos o quanto o Brasil deve aos seus
irmãos mineiros.
Não
são muito freqüentes os casos de intelectuais
que participam da vida pública. A convivência
entre o intelectual e o homem público nos remete
à questão de fundo entre o saber e o
poder. Eduardo Portella situa a difícil relação
ao salientar que "O intelectual... vem a ser
aquele que aprende aprende perguntando, duvidando.
O ser destituído de dúvidas é
puro poder. E quando o saber incerto se faz o poder
certo, inadiável se torna reinventar o saber".
Mário
Palmério soube dosar os reclamos da literatura
com as exigências do poder, por força
de sua especial capacidade de conviver, de abrir portas
com a espontaneidade do homem do interior, que sabe
o quanto a simplicidade, no balanço final das
relações humanas, surpreende os especialistas
na enganadora arte de ocultar suas ambições.
Foi
deputado federal em três mandatos sucessivos,
até que entendeu chegado o momento de rasgar
outra janela para o mundo. O que atestou uma certa
inapetência política que muito o impeliu
a viver uma multiplicidade de papéis, o que
seria inviável num político profissional.
Como deputado, exerceu a vice-presidência da
Comissão de Educação da Câmara
Federal e a liderança do Partido Trabalhista
Brasileiro, ocasião em que fez aprovar medidas
que traduziram sua preocupação com os
excedentes dos vestibulares. Revelou sensibilidade
antecipando uma solução para a crise
educacional dos anos de 1960, que iria deflagrar no
terceiro grau. Seu radar educacional indicou picadas
no sentido da democratização de oportunidades
educacionais que se iria impor à consciência
nacional. Anos após o seu afastamento do Congresso,
Mário Palmério assistirá à
eclosão de escolas superiores em todo o País,
a confirmar a necessidade que ele já sabia
imperiosa de uma abertura das universidades e escolas
de terceiro grau à juventude até então
em grande parte marginalizada do processo educacional.
Sua
luta mais aguerrida irá ferir-se na defesa
da emancipação do Triângulo Mineiro,
que Palmério em nenhum momento compreendeu
como movimento separatista. Das vezes em que assomou
à tribuna da Câmara dos Deputados, a
maioria de seus discursos revelou uma preocupação
centrada na defesa dos interesses da região
que representava. Reagindo contra severo editorial
de O Correio da Manhã, o então parlamentar
sustentou a necessidade inadiável de se processar
a emancipação do Triângulo, em
obediência aos estudos do IBGE, que recomendavam
uma nova redistribuição do território
nacional.
Sua
atuação na Câmara dos Deputados
levou-o a profligar com veemência o anticomunismo
cego e discriminador que, em seu entender, grassava
nas Minas Gerais.
Afastando-se
definitivamente da vida político-partidária,
imergiu na vida diplomática como embaixador
no Paraguai. Sua virtude congênita para o comércio
com os semelhantes persistiu a lhe dar dividendos
na nova carreira. As relações diplomáticas,
especialmente as culturais, entre o Brasil e o Paraguai
sofreram ponderável incremento nos dois anos
em que permaneceu à frente da legação
do Brasil em Assunção. Nesta curta estada
em terras guaranis, o romancista reformou a sede da
embaixada e concluiu o Colégio Experimental
a ser doado ao Paraguai. A ponte internacional que
une os dois países foi ultimada durante a gestão
de irrequieto embaixador em Assunção.
Contam
amigos paraguaios que Palmério, com invulgar
facilidade, transformava meros conhecidos de ontem
em velhos amigos. Sua informalidade e sua jovialidade
geraram um grupo de intelectuais e artistas à
sua volta. Rodeado deles, compunha músicas
que ainda hoje são tocadas em solo paraguaio,
revelando o quanto sua atuação diplomática
foi facilitada pelo seu valor e pela invulgar capacidade
de se relacionar com pessoas. Palmério compôs
letras e músicas de várias guaranias
e polcas. "Saudade" é o título
da guarania que marcou para sempre a presença
do escritor-boêmio e que foi considerada uma
das 20 mais famosas de todos os tempos. Eis a letra
de "Saudade":
Si
insistes en saber lo que es saudade,
Tendrás que antes de todo conocer,
Sentir lo que es querer, lo que es ternura,
Tener por bien un puro amor, vivir!
Después
comprenderás lo que es saudade
Después que hayas perdido aquel amor
Saudade es soledad, melancolia,
Es lejania, es recordar, sufrir!
Como
tocava de ouvido, Palmério recorria ao músico
Neneco Norton, que transpunha para a partitura a criação
musical do embaixador. Ouvido a respeito de Palmério
que chegava a acordá-lo de madrugada
para acompanhá-lo em suas refregas musicais
, assim se pronunciou o maestro paraguaio: "Fué
un excelente amigo,... pasé unos momentos muy
lindos con él, pero me cansé mucho porque
era un bohemio que a veces no paraba."
Palmério
tinha um indomável espírito de aventura.
Ao ensejo de curta permanência em Lisboa, o
romancista manifestou o desejo de viajar pelas províncias
ultramarinas. Medidas oficiais foram tomadas e o escritor
seguiu para Angola. Chegado a São Paulo de
Luanda, o romancista resolveu se adentrar em território
angolano, para visitar algumas tribos, sem disso dar
ciência a quem quer que fosse. A família,
não sabendo do paradeiro do escritor, recorreu
à embaixada em Lisboa, que buscou por todas
as formas localizá-lo. O que, afinal, ocorreu.
Eis que, num certo dia, Palmério telefonou
da capital angolana, alegre e fagueiro, como se nada
de extraordinário houvesse no fato de simplesmente
desaparecer sem deixar indicações de
seu destino. No telefonema, o encapelado viajante
não só manifestou sua inebriante alegria
com a empreitada, como resolveu voltar de Luanda para
o Rio, num cargueiro da Petrobras, deixando estupefatos
os diplomatas brasileiros que o esperavam em Portugal.
Em
Manaus, fez construir um barco, aparelhou-o com piano,
TV, serviço de radiofonia, um punhado de livros
e demais apetrechos da civilização e
ganhou mundo, percorrendo a Amazônia com o mesmo
ímpeto aventureiro que revelara em Angola.
E também se repetiram os desaparecimentos súbitos!
Viveu
a virtude pioneira do filosofar consoante Platão
nos ensinou: a admiração, esta capacidade
de se surpreender com o mundo à volta, como
se ele fosse um espectador-criador, como se a visão
da realidade se superpusesse ao ato de lhe repassar
a vida e o seu colorido.
Essa
convivência com o real e mais uma permanente
curiosidade levaram Palmério a solicitar a
elaboração de um dicionário de
termos bizarros utilizados pelos portugueses. Foi
atendido e a ele o romancista recorria com freqüência.
É
conhecida sua fascinação pela Amazônia.
Considerava-a fantástica, mas nunca escreveu
nada sobre ela. Sua condição de boêmio
certamente muito contribuiu para que a sua rica passagem
pela Amazônia não viesse a ser transplantada
para o papel. O período sabático de
Palmério na Amazônia passou in albis
pelos fastos de nossa literatura, o que é de
lamentar-se, dado o fulgor da pena do romancista e
seu agudo senso de observação, fonte
segura de que o fruto de sua experiência teria
constituído importante repositório de
dados e de análises sobre a região dos
mil rios caudalosos.
Gostava
de adjetivar muito suas frases. Era um vezo que derivava
de sua extroversão e da exuberância de
um temperamento irrequieto.
No
plano do saber, Mário Palmério se adentrou
na órbita educacional, realizando o prodígio
de implantar uma universidade, em Uberaba, a partir
de um pequeno colégio. Em 1947, foi autorizada
a funcionar a Faculdade de Odontologia, que seria
seguida pela de Direito e pelo curso de Medicina.
Aos poucos, outras unidades universitárias
se vão anexando ao arbusto por maneira a que
o conglomerado educacional ascenda da condição
de faculdades integradas para o nível máximo
de universidade. Universidade fala de arejamento,
de abertura à pesquisa, de criatividade. E
aqui se afirma de corpo inteiro esta capacidade de
realizar que bem caracteriza o autor de Vila dos Confins.
Mário Palmério, de modo mais discreto,
nos recorda Darcy Ribeiro, para quem o fazimento constituía
uma exigência de seu ímpeto interior
de transportar para o real suas concepções
ousadas no campo da educação.
Mário
Palmério foi, antes de tudo, um escritor. Legou-nos
dois títulos, Vila dos Confins e Chapadão
do Bugre. O primeiro veio a lume em 1956, ano em que
Guimarães Rosa, já célebre, lançava
seu importante romance Grande sertão: veredas.
A acolhida da crítica à obra de Guimarães
Rosa não deixou espaço para uma avaliação
adequada do primeiro romance de Mário Palmério.
Não obstante se tratar de uma obra original,
somente aos poucos é que se volveram as atenções
para o desconhecido autor do Triângulo Mineiro.
O ano de 1956 propiciou assim, consoante o juízo
de Wilson Martins, a superestimação
do novo livro de Guimarães Rosa, em prejuízo
do reconhecimento da obra inicial de Palmério.
Numa
entrevista, Palmério revelou suas preferências
literárias, destacando-se os nomes de Jack
London, Hemingway, Monteiro Lobato e Aquilino Ribeiro.
Era
um ser telúrico, e seus romances o comprovam.
RacheI de Queiroz, com razão, assentiu: "A
primeira qualidade que me impressionou no escritor
Mário Palmério foi este cheiro de terra,
que o seu livro traz, tão autêntico."
Se, de um lado, assinala-se o caráter sertanista
de Palmério, de outro, a primeira dama de nossa
literatura timbra em reconhecer no romancista mineiro
a condição de escritor. É que
Vila dos Confins emergiu para nossas letras após
um processo de decantação, em que passou
da condição de documentário político
para obra de ficção. Daí decorreu
a ausência das emoções fortes,
da dramaticidade presente na obra literária,
a percorrer os escaninhos da alma humana e sua feição
agonística. Esta nos parece a razão
do pitoresco sobrelevar na narrativa os arremedos
da configuração dramática do
texto.
Vila
dos Confins retrata a efervescência de um novo
município às vésperas de seu
primeiro pleito eleitoral. Longe do cosmopolitismo
das grandes cidades, nele se revela de corpo inteiro
o hinterland do País, com as limitações
e os hábitos arraigados de um povoado em que
um fato corriqueiro assume as proporções
de um acontecimento. Como autêntico romance
regional, Vila dos Confins põe a nu o homem
simples e mesmo primitivo do interior, com seus sonhos
e decepções nas curvas de uma estória
profundamente humana. Seus personagens nos transmitem
o realismo dos rostos delineados pelo autor. A natureza
é descrita com rara competência e precisão.
As árvores, as folhagens, os rios e seus meneios
perigosos, a boa constrictor e sua arte de bem escolher
a presa são descritos com mestria e nos transportam
para o sertão longínquo do Brasil real,
espontâneo, com suas dores e suas alegrias,
suas alianças políticas espúrias
e as traições inevitáveis. A
política é o centro do romance, e a
política como paixão, como jogo em que
muitos arriscam todas as fichas. Assim, o deputado
federal, já acostumado às benesses do
Rio de Janeiro, retorna à sua fonte eleitoral
para comandar o processo político local e manter
a sua base. Conta com aliados fiéis e outros
nem tanto. O personagem Pé de Meia é
o artífice do alistamento eleitoral. Pacientemente,
ensina os eleitores, quase sempre analfabetos, a preencher
formulários e desenhar o nome. As reações
são autênticas. A mão pesada que
treme, os comentários ante cada curva das letras:
"Este é o tal do gê? Gostei dele:
uma simpatia de letra." A narração
de Pé de Meia orientando os caboclos a garrunchar
o nome é uma faísca de realismo do sertão
com o seu linguajar, seu ritmo. "Pé de
Meia não deixa afrouxar o embalo." É
então que pega "no mãozão
cascudo... Vai chofreando a bicha, para cima e para
baixo, caminhando com ela sobre o papel... primeiro
a foice espigada do jota; depois, a laçada
bamba do ó; em seguida, mais duas voltas grandes,
repassadas e atreladas uma à outra. Mas ainda
falta o remate: o urubuzinho do til".
A
região "é um mundão largado
de não acabar mais". É "o
Sertão dos Confins magro de boas terras".
Daí o desenvolvimento da caça e da pesca.
É
genuinamente espontâneo o relato da caminhada
interminável de Xixi Piriá que, de casa
em casa, traz as encomendas e vende suas quinquilharias
pelas fazendas e pelos lugarejos, sempre a revelar
sua fina psicologia.
O
rio Urucanã desempenha papel saliente. Cenas
importantes se passam em suas águas ou em suas
margens. É lá que Paulo Santos, o deputado
federal, se abre com o padre alemão que funciona
como a consciência moral daquele espaço
perdido da civilização. Parece que o
rio centraliza os mistérios que suas águas
profundas escondem e, assim, se presta à revelação
do recesso das almas dos personagens.
O
fluir das águas, seus rumores, sua profundidade
nos recordam o rio Moldávia de Smetana. É
como se Palmério transplantasse para o romance
a música do compositor tcheco. O escritor pinta
com cores vivas a luta da sucuri com o boi que ela
irá vencer. É página antológica
do romance, em que à competência específica
do escritor se adiciona a arte de dizer, de nos fazer
reviver a cena feroz. Suponho que a luta entre a cobra
grande e a sua vítima simboliza a tentação
e a fragilidade, esta espécie de tensão
que acompanha inevitavelmente os passos do ser humano
em sua esperança na superação
das circunstâncias negativas que lhe obstruem
o caminho em direção à sua afirmação.
O
rio nos lembra o fragmento de Heráclito segundo
o qual não podemos tomar banho duas vezes no
mesmo rio, pois as águas rolam sem interrupção
de seu fluxo. É o dinamismo do ser, é
o símbolo da ação que permeia
a alma trepidante de Palmério, nada afeito
ao imobilismo do ser de Parmênides.
Vila
dos Confins é o documento fidedigno da atividade
política do interior, com todos os ingredientes
das confabulações, dos pequenos interesses
em jogo, numa atmosfera feita de radicalismos, de
fidelidades raras e de infidelidades originadas no
imediatismo dos que nada possuem e tudo jogam na cartada
eleitoral que, por primeira vez, lhes bate às
portas. De um lado, o deputado Santos; do outro, Chico
Bento, apoiado no centro do poder político.
E a vida rural vê o seu rumo ser arrastado para
a aventura de um futuro incerto, com a exacerbação
das paixões e as armações forjadas,
buscando a vitória a qualquer preço,
e em que os eleitores são simples massa de
manobra dos grupos em conflito.
Tudo
se passa no âmbito municipal, cabendo a respeito
pinçar uma passagem da curta e lúcida
crônica de Rubem Braga sobre Vila dos Confins:
"Quando ouço dizer essa beleza de coisa
que o município é a célula
mater da Nação sempre temos a
vontade de chamar a Nação para ver a
cara de sua progenitora."
Palmério
não se insinua nas dobras de seus romances.
Deixa fluir a narrativa, por maneira a lhe assegurar
a necessária autonomia. A inserção
do romancista na trama ficcional constitui em geral
uma indébita invasão, a menos que a
obra vise a uma dupla finalidade, a de expressar a
imaginação do autor no encontro com
o imaginário e a floração de
uma ética reparadora, como foi o caso da ciclópica
série de romances que compuseram a Tragédia
burguesa de Octavio de Faria.
Chapadão
do Bugre recompõe o tecido vocabular de nosso
interior, de que constituem exemplos frisantes expressões
como: "O caminho que eu cortei tava sem sintoma",
"Ia deixando que o Zé Calixto espalhasse
o fiz-e-aconteci particular lá dele",
"Era como se fosse um descuidoso caminho aberto
de recém", "...o bom gênio
da polícia acomodada e pouca",
"Viagem de boca não faz despesa".
Em
seu segundo romance Palmério alonga a narrativa,
multiplicando os pormenores sem perder o prumo do
rico linguajar colhido em suas andanças costumeiras
pelo nosso hinterland. Os matizes consuetudinários
emergem nitidamente e o viés político
também comparece sem a ênfase de Vila
dos Confins. A distinção entre os dois
romances parece situar-se na síntese maior
do primeiro e no teor analítico do segundo,
em que tem inequívoco realce o sentimento de
vingança. Frise-se, porém, que a obsessão
de José de Arimatéia, em seu itinerário
fatal a caminho da desforra e da recuperação
de sua honra, não foi cinzelado em brasa viva.
Aqui e ali percebe-se em Palmério o quanto
a natureza disputa com o homem lugar de destaque em
seus romances. Em Chapadão do Bugre, a mula
Camurça, que carrega no lombo a vindita potencial
de seu dono, constitui personagem de relevo na trama
romanceada, chegando ao extremo de externar afeição
por José de Arimatéia e repúdio
por Seu Persilva. Em Vila dos Confins a presença
da natureza é patente, mas se diversifica.
Em Chapadão do Bugre, parece concentrar-se
no animal que livrou da morte o personagem principal
em mais de uma oportunidade, mas não pode evitar
o desfecho dramático do romance.
A
variedade de facetas do escritor mineiro expressou
sua riqueza humana e a capacidade de acolher o outro
por reconhecer que a sociedade é uma communio
personarum.
Espírito
aventureiro, parlamentar, diplomata, educador, homem
de letras, Mário Palmério conquistou
lugar de destaque em nossa cultura, e esta Casa lhe
registra com orgulho a contribuição
literária.
Discurso
disponível no sítio da Academia Brasileira
de Letras, no endereço:
Leia também
Íntegra do discurso
de Mário Palmério na posse na ABL |