A
CHACINA
Mário
Palmério
Acostumado
a levantar-se cedo e ir logo ao Forum, Seu Juca Meirinho
ali chegou pouco antes das sete da manhã, malgrado
o frio e a ausência do Juiz de Direito.
Sabia
da reunião
marcada para as oito horas entregara, na véspera,
por ordem do Dr. Damasceno, a chave da porta de entrada
do sobrado ao Sargento-Ordenança e desejava,
agora, pôr-se à disposição
do delegado militar. Abriria o café do vão
da escada e, vez ou outra, acharia desculpa para ir
até o andar de cima, conforme recomendara o
doutor, a fim de verificar se não tentavam
fuçar pelo quartinho fechado, cheio de roupas
e outras coisas particulares, além de tanto
livro e papelada.
A
porta estava aberta, de sentinela embalada. Mais velho
que o sobrado era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro
no antigo Forum, e já rapazote e já
taludo, quando da construção e instalação
do novo o prédio acabou como por ser casa,
coisa sua, e o oficial de justiça foi entrando,
distraído, pensando no café do Capitão
e das outras pessoas por chegar.
Alto!
o cavalariano atravessou-lhe o passo.
Assustado
com o berro, a feia catadura e a declarada má-inclinação
da sentinela a fera estava armada de máuser,
sabre e mosquetão, as cartucheiras pesadas
de tanta bala mal pôde o Juca Meirinho gaguejar:
Mas
eu sou o oficial de justiça... O doutor...
O Doutor Juiz de Direito...
Aqui
não tem juiz de direito nenhum! O Forum tá
requisitado. Se arretire!
O
jeito era afastar-se, como ordenava o soldado, e foi
o que fez o Juca, sem abrir mais a boca, cruzando
a Praça e indo postar-se na esquina da confeitaria.
Quando aparecesse o Capitão reclamasse o café,
que viessem ali chamá-lo... E, se o homem azedasse,
paciência!: o volantezinho malcriado da porta
do Forum, então, que ouvisse...
Erguia-se
a manhã, ainda fria e nevoenta, e principiava
a encher-se o Largo das Mercês. Abriam-se as
portas da Confeitaria do Cucute, as das lojas e outras
casas de negócio abriam-se as janelas dos sobrados
que davam para a Praça. Iam e vinham as normalistas
descia dos altos o povo do comércio, subiam
os que voltavam do Mercado.
Encostava-se
ao ponto o primeiro carro-de-praça, quando
o relógio da Matriz deu as sete horas, e começou
a apitar a serraria-carpintaria do Seu Costinha da
Força-de-Luz, lá no Alto da Estação.
Mais
um dia! pensava o Juca Meirinho, de pé na esquina,
curtindo a mágoa causada pelos gritos da sentinela.
Felizmente, porém, o Governo já havia
mandado chamar, com urgência, o doutor... Seu
Polinésio da Estação falara,
muito em segredo, na véspera, depois que partira
o Dr. Damasceno, sobre um telegrama do Dr. Tancredinho
para o pai, o Coronel Americão: as coisas,
na Capital, corriam bem, pois o rapaz se declarava
muito satisfeito... Decerto a viagem o Dr. Damasceno
Soares era para fecharem, por lá, algum acordo,
acertarem tudo com o Coronel Americão, mandarem
embora o Capitão Eucaristo e a soldadesca dele...
Sim
concordava com Seu Polinésio da Estação
o Juca Meirinho o Dr. Damasceno, pessoa tão
religiosa, não podia estar apoiando, no íntimo,
as barbaridades da Captura: o Dr. Jojoca, coitado
criatura tão alegre, um mão-aberta,
brincalhão... O inofensivo do Quincota, esse,
o mal dele era somente aquela mania de futricar, meter
a colherzinha-torta onde não devia... Que limpassem
a cidade do banditismo, que se pusesse um freio aos
abusos do Coronel Americão Barbosa... havia
mesmo necessidade de um pouco mais de energia por
parte do Governo...; mas sem tanta malvadeza e violência!
Prenderem o Clodulfo era merecido: culpado de tudo,
o alma-negra de Santana do Boqueirão, o espírito-mau
que atuava na sombra... Sim. Precisavam de acabar
com tanto crime, tanta jagunçada: não
passava uma semana sem nova façanha da quadrilha
do Cludolfo: a última Santana do Boqueirão
inteirinha já sabia dela a história
do José de Arimatéia em Campanário...
Passou
pela esquina o Xico das Moças murchozinho,
as mãos cruzadas nas costas, olhando pro chão,
parecia até que falando sozinho. Oito filhas-mulheres,
o azarado! E todas solteiras ainda... Decerto nem
dormir ele não podia mais, com o fechamento
da Lotérica... Viver, agora, de que, o pobre
do Seu Xico? Sustentar de que maneira a mulherada
em casa, se a única ocupação
que sabia ele desempenhar era vender bilhete e encher
talão de bicho?
Chegou
à esquina Seu Lamartine da Farmácia,
o Brasilino da Tinturaria, o Aracífico da Gráfica.
De charrete, passou o Zé da Vó, carregado
de menino, vindo da chácara, com certeza. Outro
que perdera a minazinha, o Zé da Vó:
o ponto mais movimentado do centro da cidade, o invejado
Elefante de Ouro, com mais de vinte cambistas... Além
do bicho, o víspora, e mais o buzo e o jaburu
nos fundos...
Deus
havia de ajudar porém suspirou o Juca Meirinho.
O Dr. Damasceno acharia jeito de normalizar, na Capital,
a ruim situação, deixar, pelo menos,
aberto o jogo... Ali estava ele sim, ele também,
Seu Juca Meirinho do Forum com um rombo danado na
feriazinha... Brincando, brincando, eram lá
os seus oitenta, os seus cem-mil-réis o que
rendia, em comissão, e todo mês, o talãozinho
dos advogados e do pessoal aos cartórios justo
o que pagava do aluguel de casa.
Os
primeiros a chegar passava pouco das sete-e-meia foram
o Capitão Eucaristo Rosa e o Sargento Hermenegildo.
De passo descansado atravessaram pelo meio do Largo
sem se deterem na esquina ou na confeitaria e entraram
logo no Forum.
A
notícia da reunião correra pela cidade,
e começava a juntar mais gente na Praça,
nas portas das casas de comércio, nas janelas.
Próximos do Forum, na calçada, a porção
de cavalarianos do Destacamento de Capturas, armados
e municiados fartamente se via pelas cartucheiras
estufadas, pendentes dos cinturões.
Demonstração
de força era o comentário geral. Maneira
do Capitão Eucaristo obrigar o Coronel
Americão a ceder a tudo, sujeitar-se por completo
às imposições, entregar à
Captura os jagunços que faltavam. Todos já
estavam a par das boas notícias mandadas ao
pai pelo Dr. Tancredinho, e do telegrama, também,
chamando o Juiz de Direito. Não demoraria a
ordem para que a Captura se retirasse de Santana do
Boqueirão. E o Capitão Eucaristo aproveitava
o pouco tempo que lhe restava: iria embora, iria,
mas depois de dobrar a arrogância do Coronel
Americão, deixar o chefão de Santana
humilhado, desmoralizado por completo...
Cederia
o Coronel? Afinaria frente ao aparato da Captura e
às ameaças do Capitão? perguntavam,
a si mesmos e uns aos outros, os santanhenses reunidos
no Largo das Mercês, parados de curiosidade
e expectativa.
Não
eram ainda as oito horas quando apontaram na esquina
do alto da Praça certamente que vindos da casa
do Coronel Américo Barbosa, concentrados ali,
primeiramente os chefes do Diretório convocados
pelo Capitão Eucaristo Rosa. Quase todos, ausente
do grupo apenas Seu Valério Garcia, o Delegado
Municipal. Na frente, os principais: o Coronel Americão
e o Coronel Calixtrato, este de bengala e chapéu-panamá,
emproadão e pedante como sempre. Atrás,
os outros três: o Major Hipólito, Seu
Josué Malaquias e o Coronel Ludgero Alves.
Desciam
o Largo pela calçada da Força-e-Luz,
atravessavam-no junto ao ponto dos carros-de-praça,
passaram pelos soldados espalhados nas imediações
do Forum. Entraram no sobrado como se em um daqueles
dias de eleição, na hora de encerrá-la,
lavrarem as atas e combinarem o foguetório,
a passeata... alguém se lembrou. Sim, apenas
os chefes do Diretório do Coronel Américo
Barbosa podiam, nessas ocasiões, entrar no
edifício guardado pelos jagunços de
carabina: a oposição que esperasse do
lado de fora, se estrebuchando de raiva, ciente já
do resultado...
À
porta do sobrado, a sentinela; dentro, no saguão
dos cartórios e ao pé da escada, outro
volante um cabo, embalado também. Ninguém
mais.
Podem
subir... o Cabo Zeca Branco disse. O Capitão
já tá esperando lá em cima.
Subiram
os dois lances da escadaria. No topo, à porta
do salão de júri, o Sargento Hermenegildo:
Os
senhores entrem... Vou avisar o Capitão Comandante...
Mas, tá faltando um...
Seu
Valério Garcia já deve de tar
chegando o coronel Americão disse. Mandou me
avisar que vinha direto praqui... Ele mora logo
em frente, na esquina da igreja...
Os
cinco assentaram-se em torno da mesinha onde o Juiz
de Direito costumava presidir às audiências
e ouvir as testemunhas. O Sargento apressou-se em
vir avisar o Capitão da chegada do coronel
e companheiros. O Delegado Especial Militar estava
no gabinete reservado, do Doutor Juiz de Direito o
Sargento Hermenegildo explicara, antes de deixar o
salão.
Demorou-se,
porém, muito pouco, voltando com a ordem do
Capitão Eucaristo:
O
Capitão Comandante quer falar primeiro com
o Coronel Américo Barbosa... Em particular...
Vazio
o corredor, apenas mais outra sentinela um praçazinho
miúdo, preto tal qual o Sargento Hermenegildo
, essa colocada junto à porta fechada do gabinete
do Juiz o Coronel Américo Barbosa observou,
enquanto caminhava seguido do Ordenança. O
soldadinho entreabriu a porta, esperou que o coronel
entrasse, espremido, por ela, e fechou-a novamente.
O Sargento voltou ao salão de júri.
Correram
alguns minutos. A sentinela foi então quem
veio chamar:
É
para ir também o Coronel Calixtrato.
Me
acompanhe! ríspido, feio, o Sargento Hermenegildo
ordenou.
Lá
se foi também, chapéu-panamá
e bengalão nas mãos, escoltado pelo
Ordenança, o Coronel Calixtrato Barbosa. A
sentinela abriu-lhe meia porta repetiu a cerimônia
e o Agente Executivo de Santana do Boqueirão
entrou na saleta do fundo do corredor.
Nesse
meio-tempo, o Coronel Ludgero Alves, incomodado com
a demora do Valério Garcia já havia
dado as oito horas o relógio da Matriz levantara-se
e fora até a uma das janelas do sobrado para
olhar o Largo. Espiou, primeiro, para o relógio
cinco minutos já de atraso! e avistou, em seguida,
o Valério que cruzara o jardim, apressado,
pelos lados do coreto
O
Coronel Ludugero! chamou, alto, da porta do salão,
o Sargento Hermenegildo, depois de receber outro recado
da sentinela. Me acompanhe!
Tratados
que nem menino de escola!... mal se continha, remoendo
o ódio, o velho Coronel Ludugero Alves. Fazendo
chamada, o atrevidaço do Capitão, e
por um crioulão boçal daqueles...
Mas
deixou a janela e acompanhou o Ordenança pelo
corredor. Chegados à porta fechada do gabinete
do Juiz de Direito, a sentinela levou a mão
à maçaneta.
Foi
quando o Coronel Ludgero Alves viu então: debaixo
da porta, infiltrando-se pela fresta rente ao assoalho,
a coisa começava a escorrer sobre as tábuas
larga e grossa, e vermelha bicazinha... Sangue! o
velho, de instantâneo, tudo percebeu: o Americão,
o Calixtrato!... Num arranco inesperado para trás,
conseguiu esgueirar-se por entre o sargento e a sentinela,
e tropegar rumo à escadaria:
tão
matando a gente! tão matando! o Coronel
Ludgero disparou a gritar que nem um alucinado.
Mas
não conseguiu alcançar nem o fim do
primeiro lance da escada, lento de pernas, idoso demais
para vencer os degraus estreitos e quase a pique.
Alcançado pela linda pontaria do Sargento Hermenegildo,
caiu por ali mesmo, picado pela rajada seca dos terríveis
tiros curtos, de aço, de pistola-máuser.
Logo
ao primeiro grito do Coronel Ludgero Alves, muitas
portas, até então fechadas, se escancararam,
ali por dentro do casarão do Forum. Do gabinete
reservado, onde haviam sido massacrados os coronéis
Americão e Calixtrato, saíram três
cavalarianos, mascarados de sangue, machadinha em
punho um deles o Cabo Salvador, o que, trepado na
cadeira colocada atrás da porta, fora incumbido
de golpear, em primeiro e na cabeça, à
medida que entravam os condenados ao abate, conduzidos
um por um pelo Sargento Hermenegildo. O Capitão
Eucaristo Rosa, esse rompeu, carabina engatilhada,
do banheiro pegado ao quarto de dormir do Juiz de
Direito, na outra ponta do corredor. Da saleta dos
advogados, vizinha ao salão do júri,
do cômodo ao lado da escadaria depósito
da papelada velha dos cartórios das sentinas
do andar de baixo, do café de Seu Juca Meirinho...
de todos os cantos e desvãos saltaram os volantes
da Captura, açulados mais ainda pelos tiros
da pistola do Ordenança.
Encantoados
no salão, restava ao Major Hipólito
e ao Josué Malaquias apenas a janela aberta
pelo Coronel Ludgero, na hora em que fora ele olhar
as horas e a Praça, preocupado com o atraso
de Seu Valério. Para ela arremeteram-se os
dois.
Das
sacadas dos outros sobrados da Praça, das esquinas
e calçadas, viram-nos tentar a escapada...
a desesperada proeza de quererem galgar o peitoril,
montá-lo, atirarem-se janela abaixo. Os pobres:
velhos, encarangados de juntas... Muita gente assistiu
aos dois como que a lutar um com o outro, se atrapalharem,
se espremerem... enquanto, de dentro do sobradão,
recomeçavam os tiros, rápidos, repetidos.
Sim, venceram o parapeito da janela, galgaram-no sim,
o Josué Malaquias e o Major Hipólito:
transpuseram-no, precipitaram-se daquela altura...
mas alçados e empurrados, depois de fuzilados
pelas costas, arrojados fora pelos soldados lá
de cima, para virem espatifar-se na calçada
de pedras do Largo das Mercês.
Seu
Valério Garcia tudo presenciou, parado no meio
do Largo, estupidificado, como que estuporado da cabeça
aos pés. Somente se mexeu para cair, derrubado
por um balaço vindo dos altos do Forum um coice
de burro, de veloz, certeiro e rijo que o atingiu
na boca do estômago, quase que no centro exato
da cintura.
Ocupar
toda a praça fronteira ao Forum, guarnecer
os cantos do jardim, as esquinas do Largo, evacuar,
limpar completamente as imediações do
Forum, isso foi obra de instantes para o treinado
e ágil Segundo Destacamento do Capitão
Eucaristo Rosa.
Quando
o oficial desceu o degrau de entrada do sobrado, acompanhado
do Sargento Hermenegildo, muitos santanhenses lograram
vê-lo, uns através de frestas de janelas,
outros por debaixo das mesas ou amoitados atrás
do balcão da Confeitaria do Cucute. E ouvi-lo
berrar para alguns volantes da Captura que se abeiravam
dos corpos estendidos no paralelepípedo e lajes
da calçada:
Se
afastem! Entrem em forma! Os parentes que tomem conta!
Muitos,
muitos anos depois, e Seu Valério Garcia ainda
contava, para quem quisesse ouvir, como escapara à
chacina de catorze de maio, em Santana do Boqueirão:
Foi
Seu Genésio, atacadista de pinga e rapadura,
quem me segurou em casa, desde manhã cedo,
fecha-não-fecha a compra da safra do Pinhém
daquele ano. Se aproveitava, o velhaco, da minha pressa,
mode a reunião... Me atrasou, acabou
levando um vantajão no negócio, mas
me salvou a vida, o Seu Genésio...
E
também mostrava, para quem quisesse ver, o
relógio de algibeira um patacão de ouro,
pateque, redondão e grosso com a bala de carabina,
de chumbo, encravada bem no centro:
Parece
até milagre, mas o soldado chegou a me enfiar
o pé por debaixo do pescoço... Eu tava
de bruço, e ele ia começando a
me desvirar, no chão, a ponta de bota... Na
horinha em que o Capitão Eucaristo gritou aquela
abençoada ordem!
(Chapadão
do Bugre, Capítulo 40, 1965.)
Originalmente disponível no sítio da
Academia Brasileira de Letras
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