A
PESCA DO SURUBIM
Mário
Palmério
Hora
e tanto já, e nada de peixe. Mas o gostoso
era ficar assim na canoa, pensando na vida, imaginando
coisas. Passada aquela eleição, ia sossegar.
A política matava, acabava com a pessoa. Depois
que se metera nela, nunca mais pudera ter uma semana
de descanso. Escravo dos outros, do partido, do eleitorado.
E os adversários
não dormiam, os concorrentes vigiavam. Todos
os dias, uma notícia má, nomeações
que não saíam, chefes do interior que
ameaçavam romper por causa de pedidos impossíveis...
E ter de mentir, de prometer...
Doutor,
doutor... agora é a peixa... é a peixa,
sim... engasgava o Gerôncio. Ferra, doutor,
ferra!
Mas
era Paulo quem estava no cabo da vara; sabia que precisava
esperar, sentir primeiro aquele tranco surdo trazido
das profundidades pela linha de aço e pelas
fibras do bambu.
Calma...
Agora!
O pescador abaixou a vara um pouco mais, mais um pouco
ainda, para bambear o aço e voltou com ela,
num golpe duro, seco, certo.
Ladrão!
Paulo gritou quando sentiu a vara erguer-se frouxa,
sozinha.
Lhe
falei, doutor... O senhor dormiu no ponto...
Fora
peixe grande, mesmo. Do muçum, nem notícia:
o anzol sem um fiapo de isca...
Ferrou
de mau jeito, Gerôncio. Mas antes escapar no
começo que na hora de embarcar o bicho na canoa.
Já-já o safado está de volta.
Você trouxe alicate?
A
idéia do alicate era desculpa. Paulo sabia
que Gerôncio não se dava a esses luxos
de carregar a porção de ferramentas
que pescador de cidade costuma trazer nas capangas.
Com a volta do anzol mais entortada ou exatamente
como se achava, não seria por isso que o peixe
ia escapar da fisgada. Falta de treino, isso sim.
Errar logo um peixe de couro! Felizmente, o Rufino
não estava perto. Se estivesse...
Paulo
ajeitou outro torete de muçum no anzolão.
Perfeita, aquela enguia preta e encontradiça
em qualquer brejo ou resfriado dos rios do Sertão
dos Confins. O Lobo, outro fanático pela pesca
dos grandes peixes noturnos, tentara aclimá-la
em Amburana, inventando um brejo artificial no quintal
da casa dele, planejando até uma criação
para vender as iscas vivas à companheirada.
Mas o muçum só vivia mesmo era pelas
bandas do Urucunã, nativo de lá, e tal
criação dera em nada. Uma pena, pois,
como o Lobo dizia, Deus quando inventou o mundo previu
até a pesca do surubim. " Que outra serventia?
" perguntava ele. " Prestem atenção
na cobrinha: carne dura, sangrenta, o tubo digestivo
num canudo só, de calibre certo para se ajustar
aos anzóis fundo-de-agulha e revestido, ainda
por cima, desse músculo contrátil, acomodatício,
agarrando-se ao aço como guarnição
de borracha..." Outro que gostava dum palavrório,
o Lobo. E as discussões dele com Rufino? Os
peixes em latim, os plecostomus, os bimaculatus...
Foi
pena você não conhecer o Lobo, Gerôncio:
companheirão estava ali! Paulo disse, depois
que atirou novamente a isca no centro do rebojo.
O
senhor fica conversando, Dr. Paulo, e daqui a pouco
o peixe passa outra vez a perna no senhor... provocou
o maldoso do Gerôncio.
Mas
o pescador estava prevenido. Sustentava, agora, a
vara com ambas as mãos, sem deixar que encostasse
na borda da canoa, para que as mínimas vibrações
do bambu lhe chegassem imediatas e perfeitas. Ferido
na boca pela ferrada malsucedida, o peixe ainda demoraria
a voltar e a sucumbir ante a presença do outro
muçum carnudo e tentador... Mas havia outros:
o rebojo da peroba-rosa nunca deixava ninguém
de mãos abanando...
Tontura
gostosa dava a pinga forte do Gerôncio. E o
silêncio, o balançar maneiro do rebojo,
o fresco da chuvinha manhosa, a escuridão do
rio... Impossível fixar-se numa idéia
só, ou concentrar-se apenas na ponta do caniço:
os pensamentos libertavam-se naquelas horas de espera,
as preocupações sumiam, vinha a suave
sensação de leveza e bem-estar. Daí,
o irresistível daquelas fugas para as beiras
de rio, o vício em que elas se tornavam. Boa
vida, a de antigamente! Mas metera-se de uma vez na
política, e agora era tocar para diante, que
jeito já não havia de recuar. Abandonar,
por exemplo, o João Soares... E os compromissos
com o Bernardino, esse quase convencido, afinal, da
inutilidade da antiga e terrível oposição
aos Rochas, já aceitando os argumentos de D.
Candinha, já se afastando da briga, dedicando-se
mais à clínica e à família...
Impossível... Fora ele, Paulo, que aparecera
em Santa Rita para açular o pobre, metê-lo
em brios... Razão tinha, e de sobra, a mulher
do Bernardino, em mostrar aquela má vontade,
aquela quase hostilidade... E os outros? O pessoal
de Amburana, de Pedra Branca, os companheiros dos
vinte e tantos municípios onde fora fundar
partido e reforçar a luta contra a situação?
Recuar como? Fugir como?
Agora,
doutor! Ixe, que monstra. Não dê a ponta,
não, que a linha arrebenta! berrou de súbito
o Gerôncio.
Desta
vez, a ferrada fora certeira. Ao golpear a vara, Paulo
sentiu o soco da fisgada, firme tal e qual machadada
de machado novo em tora macia de cedro. E um despropósito
de peixe, que a vara se arqueou em curva alta, fechada,
atingindo até os gomos atarrancados do cabo.
Surubim!
E dos manatas, olhe a vara! continuava o escandaloso
do Gerôncio. Não dê a ponta, não,
doutor!
E
dos pintados! o deputado gaguejou. Está puxando
de esguelha, o ladrão... Duas arrobas, no mínimo.
Virgem, é um cavalo de peixe!
Sempre
com razão, o Aleixo Telegrafista! Ferrada misteriosa.
Sim, quem puxava o anzol com aquela força não
podia ser bicho deste mundo. Era o caboclo-dágua.
O chupão das profundas do rio levara quase
metade da vara para dentro do rebojo. Mantê-la
em pé, embodocada, as mãos destreinadas
de Paulo já quase não o conseguiam e,
se o peixe lograsse diminuir de mais um tico o ângulo
que o bambu ainda mantinha com o nível do rio,
aí então é que nada evitaria
o desastre: linha, vara, pescador bastava que este
caísse na bobagem de bancar o teimoso), tudo
seria engolido de uma vezada pelo horrendo sumidouro....
Nos
seus bons tempos, Paulo não admitiria aquilo
mas teve de aceitar, agora, a demão do Gerôncio.
O preto passara-lhe os dois braços rijos pela
arca do peito, cruzando as mãos num arrocho
definitivo, ajudando a fazer força. Pés
calçados no reforço transversal que
todo canoeiro prático já deixa pronto,
inteiriço, na hora de ocar a tora de pau, o
negro bufava:
güente
o galho do seu lado, patrão, que do meu lado
eu güento!
O
bambu estralava que nem taboca no fogo. O cabo de
aço três fios doze trançados,
decerto presente do Pe. Sommer ao Gerôncio parecia
laço em cabeça de boi xucro. Zanzava,
doido, cortando o rebojo de fora a fora, enfiando-se
por baixo da canoa, procurando a água-braba,
fugindo, voltando, regirando agora, desatinado...
Recolha
a sua linha, Gerôncio! Me largue! Deixe o bicho
sozinho por minha conta. Recolha a linha, senão
o peixe se embaraça nela!
Mas
o Gerôncio não largava. Conhecia o tamanho
daqueles surubins do rebojo e, pelo tinido da linha,
adivinhava o animal que o Dr. Paulo havia ferrado.
Tem
perigo não, Dr. Paulo. Ei, linhinha macha!
Fica pancrácio, fica, bigodeira de jauzão!
Ixe, Nossa Senhora, bicho feroso este, cruz!
Linha
às costas, agora, o peixe esbarrava velhaço,
no centro do rebojo, onde a ventosa da água
chupava irresistível como boca de sucuri. A
vara envergava, envergava, ringia, estalava.
güenta,
doutor! Incomode com a canoa não isso é
brinquedo para ela! Se entrar mais água, eu
solto a poita...
Bicho
desgraçado! O repuxo era tal que a canoa embicava,
popa levantada, a proa apanhando água. Se o
peixe se mantivesse empacado daquele jeito, que nem
estorvo em boca de bueiro, o remédio era mesmo
soltar a poita para aliviar a canoa e ficar rodando
com ela por sobre o redemoinho, até que se
cansasse e cuidasse de inventar outra moda. O tempo
passava, Gerôncio sem se resolver alargar o
companheiro, e a canoa pegando cada vez mais água.
Pode
me largar, Gerôncio. Solte a poita!
Mas
não foi preciso: o surubim desembestara, agora
num volteio maluco de pião. Lá estava,
porém, na argola de arame do cabresto, o girador.
A linha de aço se destorcia quando chegava
ali, afastando o perigo das crocas. Muito peixe escapa
assim, em vara sem girador, a linha arrebentada no
melhor da hora...
Tempão
lutou o peixe antes de pranchear, entregue. A espaços
apontava a cabeça à superfície
todo feioso de pau preto para, em seguida, remergulhar
num último desespero. A vara, porém,
empinada, quase a prumo, obrigava-o mais e mais a
acercar-se da canoa. Gerôncio deixara, afinal,
Paulo gozar sozinho a luta com o surubim já
dominado.
Me
apanhe a carabina, Gerôncio. Tome a vara, tome...
O
surubim boiou por derradeiro quando boiou bem no centro
do rebojo, lá onde as espumas não chegavam.
Paulo atirou. Bruto tiro de morteiro que quis ameaçar
um ror de iguais respostas nos barrancos mas que mal
deu em tímido pingue-pongue de ecos frouxos,
porque molhados e apagados logo pela chuvinha que
apertava.
(Vila
dos Confins, capítulo IV, 1956.)
Originalmente disponível no sítio da
Academia Brasileira de Letras
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