Histórias
de sucuri
Cobra
que rasteja traiçoeira na literatura
de Palmério inspira lendas famosas
no imaginário popular
Thaís
Ferreira (*)
Sucuri
quando bate a boca em focinho de boi,
bate definitivo. Perto ou longe do barranco
pouco importa, que corpo de sucuri
espicha e encolhe que nem elástico.
Uma laçada só, com a ponta
do rabo acabada em gancho para arrochar
ainda mais o nó cego na hora
do repuxo, e o principal está
feito.
Escondida
no fundo da lagoa, rabo engatado na
raiz, a cobra tocaiava o boi carreiro.
De fora da água, só
a cabeça chata, escura e parada
que nem toco de pau boiante e bem
disfarçado na touceira de santa-luzia.
Não era de agora que vinha
vigiando a rês: já percebera
o defeito na vista do infeliz
proeza de somenos para uma sucuri
que se preza medira o seu tamanho
e se alegrara com a magreza dele.
Menos carne, mas, em compensação,
menos trabalho.
A
sucuri mergulhou macia, tão
sonsa que nem meia borbolha se abriu
no espelhado azul-escuro do lagoão.
Rente ao barro do fundo, veio vindo,
veio vindo, sempre do lado cego do
boi, até o ponto certo do bote.
E adeus boi vermelho-churriado, boi
de guia sestroso, carreiro de estimação.
Um
olho, mas o suficiente para ver a
morte na tromba pendurada nas fuças.
Certeza certa do pior dos destinos:
acabar em boca de sucuri.
Madrugada,
já. Paulo e tio Aurélio
ainda conversam, comentando o fim
do pobre boi carreiro pegado pela
sucuri:
Se a gente tivesse acudido mais cedo,
talvez até que o boi escapasse.
Escapava não, Paulo. Boi apanhado
por sucuri fica inutilizado. Endoidece.
Conheci um no pantanal, que os peões
conseguiram laçar. A cobra,
com o movimento de gente, largou o
focinho do pobre e sumiu na lagoa.
E depois que soltaram o laço,
o boi desembestou por aquele mundo
afora, arrasando com o que topava
no caminho. Acabou num desbarrancado,
pinchado no fundo, em petição
de miséria.
E perderam a sucuri, ainda por cima
Pois é. O jeito é mesmo
deixar que ela engula a rês.
Fica três dias com aquele mundo
entalado na barriga, esperando que
a carne apodreça, digerindo
o boi devagarinho. Aí a gente
acaba com a vida dela.
Mário
Palmério
O
trecho que você acabou de ler foi
selecionado de Vila
dos Confins de Mário Palmério.
Histórias como essa são
ouvidas cotidianamente por pessoas mais
velhas, sobretudo moradores de zona rural
ou mesmo de cidades de interior. "Sucuri
come boi, capivara, cachorro e até
gente. Quando eu era pequena minha mãe
contava que a sucuri enfeitiçou
uma mulher que amamentava o filho. A mulher
dormiu profundamente e a cobra começou
a mamar nela. Para o bebê não
chorar de fome, a cobra colocou a outra
ponta na boca da criança. O marido
ao entrar no quarto e ver a situação,
se assustou e puxou a cobra, ela se soltou,
mas arrancou o bico do seio da mulher",
relata, convicta, a aposentada Catarina
Félix.
Eunectes
murinus é o nome científico
da "atriz" dessas histórias. Encontrada
em toda a América, seu habitat
são os pântanos, rios e lagoas.
A sucuri é cinza escura com grandes
pintas pretas nas laterais da cauda. Pode
atingir 12 metros e viver 30 anos. Sua
reprodução é vivípara,
e normalmente nascem entre 5 a 19 filhotes
por ninhada, no início da estação
chuvosa. Sua gestação ocorre
num perído de 225 a 270 dias. A
sucuri é essencialmente carnívora,
alimenta-se de peixes, rãs, ou caça
animais que vão beber à
margem dos corpos d'água, como
cutias, capivaras, antas, veados e bezerros.
Chega a pegar até jacarés,
matando-os por asfixia! A cobra pode ser
encontrada nas bacias dos principais rios
brasileiros, como a do Paraguai, a do
Baixo Paraná, incluindo o Pantanal
e a do Tietê.
A
veterinária Flávia Maria
Esteves explica a ação da
Sucuri. "Ao contrário de que
muitos pensam, a cobra não mata
suas vítimas quebrando seus ossos.
Os ossos, uma vez quebrados, rasgariam
todo o trato digestório da cobra.
As 'vítimas' são mortas
por asfixia. A sucuri não possui
veneno e mata suas presas enrolando-se
no seu corpo até tirar-lhes todo
o ar."
Apesar
de não ser um animal agressivo,
a população de sucuris vem
diminuindo a cada dia, devido à destruição
de seu habitat, da poluição
dos mananciais e da caça indiscriminada
feita pelo seu maior predador: o ser humano.
(*)
Estudante de Jornalismo / out. 2005
|