Ler
para crer
Prefácio
de Vila dos Confins, escrito
por Rachel de Queiroz
Arquivo
ABL
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Vai
por aí um ano: o telefone tocou, era um deputado
que queria ir à Ilha falar comigo. Pelo nome,
Mário Palmério, não pertencia
à que um velho amigo chama a "minha bancada"
- e que aliás anda muito desfalcada , ultimamente...Não
dou sorte para reeleição.
Declarei
que receberia com muito prazer Sua Excelência
- e fiquei pensando que é que Sua Excelência
queria comigo. A hora era de crise política
e, pelas informações que tomei, nós
dois nos situávamos nos pólos opostos
dessa mesma crise.
Mas
não era o deputado que vinha me ver. Era o
escritor. Sua Excelência trazia debaixo do braço
um original datilografado que desejava que eu lesse.
Como todo candidato a estreante, posso dizer que vinha
tímido. Me tratou um pouco como medalhona,
usou das cortesias de estilo, logo a conversa descambou
para a hora política, fez-se boa camaradagem
em casa, ele explicou muito pouco o livro e partiu.
O
livro era este Vila dos Confins. A primeira qualidade
que me impressionou no escritor Mário Palmério
foi este cheiro de terra, que o seu livro traz, tão
autêntico. A gente tem a impressão que
ele nos entrega para ver, na sua integridade primitiva,
aquele rio, aquela mata, aqueles bichos, aqueles caboclos,
aquelas histórias de caçada e pescaria,
que parecem histórias de mentiroso, de tão
saborosas. Essa poesia de floresta e rio, tão
difíceis de captar, sem cair na ênfase.
Outra
qualidade importantíssima é que o homem
tem linguagem. O homem escreve. Coisa raríssima
um escritor jovem, um escritor estreante, que cuida
devidamente do seu instrumento de trabalho, que sabe
lidar com ele e se preocupa não apenas em contar
uma história ou em explicar idéias,
mas, antes de tudo, em escrever.
Porém
o importante, acima de tudo, é que o autor
de Vila dos Confins é um escritor mesmo. Este
livro aqui não é absolutamente trabalho
de diletante feito para aproveitar ócios de
político ou para dar vazão a represas
de recordações e saudades. É
obra de um escritor, isto é, de um homem que
nasceu dotado especificamente para escrever, como
outros nascem dotados para cantar de tenor, outros
para fazer cálculos mentais, outros para tocar
violão elétrico. Este nasceu para a
pena. Custou um pouco a descobrir o seu dom de nascença
- ou tinha medo dele; o que aliás foi um bem,
pois lhe permitiu amadurecer fora das gambiarras e
estrear com obra de que não terá de
se envergonhar mais tarde.
Não
acredito em prefácios e não gosto de
prefácios. Se o livro é ruim o prefácio
não adianta e se o livro é bom o prefácio
é uma excrescência. Mas neste caso, como
me sinto uma espécie de madrinha ou descobridora
de Vila dos Confins e dos méritos profissionais
do seu Autor, creio que não estou fazendo prefácio.
Estou apenas dizendo ao público que neste nosso
difícil, atormentado ofício, tão
precário em alegrias, entrou mais um recruta,
que não apenas irá longe, porque já
vai longe.
É
ler para crer.
Rio
de Janeiro, 30 de outubro de 1956.
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