O
homem (última conferência com Mário
Palmério)
José
Humberto S. Henriques
Chegamos
à casa. Eram voltas de horas. Voltas
que surgem sobre voltas, no instante em que
a tarde voleja para admitir a cana escurecida
da noite. Forma toda de estar branda a dimensão
da natureza, forma do vesperal lassear o corpo
e entregar a sua composição sem
remorso de ter que continuar no fio da luz.
Assim são os dias, assim é a terra.
Muito mais admirável se considerada do
ponto de vista da repetição e
com olhos que a possam tanger de verdade, sem
a cisma de um véu de picumã.
Chegamos. Eu e o jornalista. O que queria o
jornalista, nada mais que colher uns dados e
comunicá-los. A casa, conforme era da
hora, e por estar cercada de arvoredos densos,
o bambual cerzido, palmeiras, arbustos, estava
mergulhada em espessa penumbra, pois ali naquele
lugar, além da lógica de ser a
boca da noite, havia muito sossego de mansarda
na impressão meditativa do ambiente.
O jornalista soou a sineta e um homem de aspecto
saudável e limpo atendeu-nos, sorriu
de bem receber, em seguida, prendeu os cães,
cada um deles portanto um gene de girafa e outro
de mastodonte. Só assim, o jornalista
pediu que se nos anunciasse ao Professor.
Mário Palmério veio a nós
em trajes pijamados, uma flanela xadrezada em
tons flamencos, era o que ele vestia. Um vermelho
sobre outro tom de cor qualquer do século
passado. Ofegava ligeiramente e a pele tinha
ornamentação de palidez. Atirou
sobre a mesa um volume de GEOMORFOSINTAXE DO
RISO e pediu-se que eu o autografasse. Honrei-me.
O Professor não tinha nenhum sorriso
nos lábios, nenhum na alma. Foi o que
me pareceu. Somente o vozeirão e os gestos
de mão impositivos é que reinavam
na personalidade dele feito num rei de boa estirpe.
Honrei-me com o gesto dele atirar o livro sobre
a mesa de jatobá e dizer que eu o autografasse.
Fi-lo com gosto, aquele que a hora punha-me,
concentrei-me no nada que a hora exigia. Dois
anos antes, com mais saúde do que então,
o Professor autografava para mim o CHAPADÃO
DO BUGRE E VILA DOS CONFINS. Com dois rabiscos
ininteligíveis ele entregou-me os dois
volumes e pronto.
Escurecia de vez e o arvoredo palmeiras
incontáveis em torno da mansarda,
uma espécie de chácara, impedia-me
de ver os arredores. Se havia lua ou não.
Os vinte cães fox paulistinha ladravam
sem cessar. O jornalista falava de pescaria
e de rios mansos de águas turvas, onde
pode ser que o piau-de-olho-vermelho e a piapara
acham de fazer uma surpresa gorda. O jornalista
levara embrulhado em papéis imundos uma
piranha-do-são-francisco. Era um regalo
bom para o velho. Um presente batuta, ele mesmo
falou quando examinou o peixe. Fez um meio riso.
Especulou sobre que raio de peixe seria aquele.
Se era uma caranha. Examinei a barriga da piranha,
amarela, sob um leve torneado branco. Peixe
certo para um bom caldo, um ressuscitador de
lembranças doces, um pedaço de
luxúria, uma nesga de calor feminino.
Assim reza popularesca a crença. Piranha
dá caldo grosso.
Disse Palmério que não lia meu
pobre romance. Ainda. Disse ele que a razão
é que não desejaria ser influenciado
(Pobre de mim!). É que naquela exata
ocasião estava ele a escrever AS MEMÓRIAS
DE UM ASSASSINO PERFEITO. Talvez fosse seu último
trabalho literário, visto que, enfermo
estava. Ele contava assim. Não posso
afirmar com segurança se ele naquele
momento não estava a ler meu pequeno
texto. Quando ele atirou o livro sobre a mesa
de jatobá, vi que as primeiras páginas
estavam soltas, como se quisessem se debulhar.
Estavam forçadas de uso. Como quando
alguém lê semi-deitado ou escorado
na cabeceira da cama e usa somente uma das mãos
para segurar o compêndio que é
lido lê. Disse ele que ouvira de Guimarães
Rosa que não é recomendável
ler qualquer autor quando se compõe a
própria obra. Isto para evitar que a
mente seja contaminada por influências
extraordinárias. Ou simplesmente terrenas,
ou só janotas, ou somente distintas.
E preciso expurgar as contingências nefastas,
aquelas que deterioram uma obra de caráter
único. São as inconsciências
que devem ser afastadas. Tudo isto o Professor
Mário Palmério disse-me no lusco-fusco
daquele dia.
Tive lembranças boas da obra de Rosa,
um naco inteiro dela, ali naquele lugar. Como
se Palmério me repassasse um tronco que
ainda não fora cortado da árvore.
Era com grande intimidade, intimidade
de cozinha e terreno que ele falava do
autor de TUTAMÉIA. Foi-me ficando cada
mais fácil o transporte, um passado rico
contado por este homem sumamente interessante,
o dono do CHAPADÃO DO BUGRE. Palmério
contava coisas com espontânea voz. Pareceu-me
que o livro que ele, naqueles dias dizia escrever,
era um volume de contos. Digo pareceu-me porque
desta parte pouco me recordo, embora há
apenas cinco dias lá tenha estado a conversar
com ele. O Velho disse que a primeira parte
do livro deveria se chamar O INCÊNDIO
DOS PORÕES DO ARMAZÉM MARTINS.
Não estou certo da presteza desta afirmação,
entretanto. E confesso.
Os cabelos brancos de Mário Palmério
bela cabeleira estavam bem penteados
e jogados para trás, com aquela facilidade
que têm os cabelos lisos de adquirir aspecto
cascateado. A algum momento estávamos
na varanda ele passava as mãos
sobre a cabeleira e acertava as pontas, era
que o vento dar nela, destacava fio de fio.
Os cabelos dele, nesta época, eram finos.
Hora houve em que o Professor falou da Editora
José Olímpio, que é coisa
de doce memória, porém, não
existe mais nos dias de hoje. Enveredou pela
repetição amalgamada de como é
que se publica um livro. Falou que a possibilidade
de successo é areia movediça.
O sucesso é um astro que passou devagarinho,
mas longe, dois quarteirões atrás
do sol. Verdade seja dita. Eu nunca pude saber
o que aquele escritor e homem fascinantes pensavam
a respeito da Literatura. Achava-o sempre
assim o considerei mais afastado do mundo
das letras do que eu do banco de Boston. Aquela
hora tornava-me um tanto melancólico
e momentos houve em que não ouvi quiçaça
do que ele dizia. É que naquele minuto,
muitos contra-sensos tomavam-me de arremetida
os sentidos.
Acordei quando ele explicava que mandou, certa
vez, os originais de VILA DOS CONFINS para Rachel
de Queiroz e teve a grande sorte de por ela
haver despertado algum agrado pela obra. Desta
forma, o livro foi publicado. Da forma que Palmério
falava, dava para qualquer um crer que a coisa
mais fácil neste mundo é publicar-se
um livro. No Brasil? Grandes os méritos
dele. Belas obras. Grande Rachel de Queiroz.
Todavia, o simplório não é
tão claro assim. Pensei que ele caçoava
de minha pobre figura, o Velho.
O
poder que um homem como Palmério alberga
nas mãos é dilacerante. A criação
dos soberbos romances seus Chapadão
e Vila são bastantes e suficientes
para garantir-lhe a imortalidade. Ali, tendo
a honra de estar ao seu lado, fiquei consciente
de que era a primeira vez que eu cursava paralelo
com a vida da imortalidade ainda terrena.
O jornalista tinha mais coisas para falar. Era
amigo do escritor. Senão, não
seria recebido àquela hora. Deu sinais
de querer ir-se, pois o Velho carecia de um
bom descanso. Saí de lá com o
pé fincado no céu das sete horas.
Compreendi que estava pintado fora de esquadro.
O jornalista não desconfiava sequer da
maldita obra que se iniciava. Pé fincado
nas sete horas do céu.
Conto
vencedor no Prêmio Missões, 1ª
Edição, em abril de 1998
Referência
bibliográfica
HENRIQUES,
José Humberto S. O homem: (última
conferência com Mário Palmério).
In: GRIEBELER, João Weber. (org.) 1º
prêmio missões. Roque Gonzales:
A Notícia, 1998. p. 10-13.
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