Tributo
a Mário Palmério
Newton
Luís Mamede
Gostaria
de que alguém me explicasse o que é
saudade, porque eu não sei. Eu sinto,
respiro, vejo e vivo saudade, mas não
consigo defini-la. Nem, ao menos, arriscar
alguns conceitos. Por isso, quero saber.
Se
insisto em saber o que é saudade, é
porque se trata de um sentimento complexo e
indefinido, apesar de real. Não sei se
é o simples desejo de retornar ao passado
e reviver os momentos alegres e felizes que
marcaram a vida; se é a vontade de ter
a presença de uma pessoa querida que
partiu, ou de um bem que se perdeu; ou se é
um sonho, um devaneio, a fantasia de uma realidade
manobrada pela imaginação. Não
sei!
Insisto
em saber o que é saudade. Talvez sejam
evocações de um passeio de sonhos
pelos Confins de uma Vila perdida num desses
Chapadões povoados de Bugres, que vivem
livremente as maravilhas da natureza, nas mais
emocionantes aventuras, em contato com matas
virgens, animais ferozes, rios caudalosos e
pródigos em peixes avantajados. Ah! que
saudade!
Saudade
de uma pescaria no rio Urucanã, sentado
no banco de uma canoa, em companhia do deputado
Paulo Santos, do padre Sommer e do Gerôncio,
à espera de uma boa ferrada de um surubim.
Até sinto a emoção de fisgar
um peixe de tal porte e ver, perto da canoa,
sua cabeça apontando à superfície,
"toco feioso de pau preto", preso a um seguro
anzol, à espera do tiro certeiro da carabina
de dr. Paulo. Lembro, com saudade, os casos
de caçadas do padre Sommer, narrando
suas histórias, na cozinha do casarão
da fazenda do João Soares, cercado de
ouvintes atentos ao redor de uma mesa com grande
bule de café e uma bacia de biscoitos
e pães-de-queijo, enquanto, lá
fora, chovia uma chuva fininha. O caso da caçada
da jaguarana, a onça preta que gostava
de carne de preto, morta pela zagaia certeira
do "padre barbudão e valente", caçada
que desbancou e desmoralizou o vaidoso Aurélio
Alves, "o rei das aventuras no sertão",
agora dominado pela valentia do padre.
Insisto
em saber o que é saudade. Não
sei se é assistir ao desespero de um
boi debatendo-se para se livrar das presas esfomeadas
de uma sucuri, no fundo de uma lagoa, numa noite
enluarada; ou se é acompanhar as peripécias
do Chico Belo, coronelão manda-chuva
e político todo-poderoso de cidadezinha
caipira, a uma viagem de elevador, edifício
acima, em pleno Rio de Janeiro, e presenciar,
envergonhado, o vexame de vê-lo vomitar,
dentro do elevador, diante de pessoas importantes
da capital da República.
Reminiscências!
Doces reminiscências dos passeios em Santana
do Boqueirão, montado na mulinha Camurça,
percorrendo as ruas tortuosas e povoadas de
curiosos. À noite, um percurso pelos
bordéis da cidadezinha pacata, aonde
iam os homens colocar a escrita em dia e atualizar-se
dos últimos acontecimentos políticos.
As famosas pensões, casas-de-mulheres,
freqüentadas por gente graúda da sociedade.
A pensão da Carvalhosa, o bordel da Tubertina,
o cabaré da Maria Augusta
O que
as paredes dessas casas não teriam para
contar!
Ah! se aquelas paredes falassem!
Torno
a insistir em saber o que é saudade.
Quem sabe, o Paulo Santos não poderia
dizer, hem? Saudade de rever a Maria da Penha,
sentir suas mãos macias e sensuais acariciando-lhe
a pele nua do braço, aplicando-lhe injeção,
enquanto sussurrava, com a maior sem-cerimônia:
"Vou deixar a porta do quarto só encostada,
Dr. Paulo. É só o Sr. entrar".
Meu Deus, que saudade! Vai lá, deputado!
Ela está te esperando. Outra pessoa que
também poderia explicar-me o que é
saudade, talvez seja o Xixi Piriá. Ele,
que tinha entrada franca em todas as casas-de-família
aonde chegava. O mascate esperado e querido,
que trazia em suas malas os tão esperados
produtos da cidade grande: sabonete cheiroso,
pente, espelhinho, canivete, brincos, baralho,
batom, tesoura, gilete, perfume. Às vezes,
até recatadas cartinhas de amor, de namorados
distantes e saudosos. Depressa, Xixi Piriá!
A Ritinha está ansiosa por estrear o
vestido novo, de chita, no seu corpinho moreno
e gracioso de mocinha de treze anos.
Mais
uma vez, insisto em saber o que é saudade!
Vontade de entrar no carro-de-praça do
Daíco e rever os amigos Xixi Piriá e
José de Arimatéia, caminhando
juntos, cada um com suas desventuras amorosas
e com a honra ferida, lavada em sangue. A provocação
do Filipão, jagunço matador e
temido, e morto pelo franzino Xixi Piriá,
que não queria ver o bandido dormir com
sua Maria da Penha. Ou a traição
da do-Carmo, abrindo-se para Seu Inacinho, filho
do Seu Tonho Inácio, o patrão.
Cadelinha sem-vergonha! Ah, mas isso não
podia ficar assim! O machado pesado e firme
do José de Arimatéia abriu o crânio
do traidor. Agora, o jeito era fugir. Montar
a Camurça e fugir. "Cavaleiro e Montada".
Foge, Seu Isé. Vai embora com o Xixi
Piriá, deixando para trás apenas
a saudade de um passado recente, mas tão
distante, só porque já não
é presente
Como dói uma
saudade!
E
nesses meus devaneios nostálgicos, escuto
uma voz melodiosa, vindo do céu, que
sussura em meus ouvidos: "Saudade es soledad,
melancolía; es lejanía, es recordar,
sufrir!"
Publicado
originalmente no jornal Lavoura & Comércio,
no dia 30 de setembro de 1996.
Referência
Bibliográfica
MAMEDE, Newton Luis. Tributo a Mário
Palmério. Lavoura & Comércio.
Uberaba. 30 set. 1996
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