"Eta
fuminho bom"
Hugo
Prata
Mário
Palmério, aos 18 anos, era um latagão
meio desajeitado, muito branco, sabido, de pés
e mãos enormes, com um bigodinho ralo
e uma aparência de cantor de tangos. Caiu
nas graças do Cel. João Prata,
que sempre o levava consigo quando ia para sua
fazenda. Era saber que o varapau estava disponível
e lá vinha o convite: "Tranca, vamos
passa uns dias na chácara". Mário
apreciava o velho e aceitava o convite. Iam
num Fordinho 29. Na frente, Mário guiando,
e, ao lado, o coronel que descalçava
a botina e ia coçando os dedos. No banco
de trás, bem espremido, ia o restante
da família, Tuta, Teté e Lolô,
esposa, cunhada e filho.
João
Prata gostava de um bom cigarrinho de palha
e dedicava bom tempo fazendo um. Aliás,
o fazer um cigarro já faz parte do prazer.
É como um pescador preparando sua tralha,
ou uma mocinha se arrumando para o baile. O
coronel picava cuidadosamente o fumo e o desfiava
com volúpia, antegozando o prazer da
fumacinha de daqui a pouco. A palha era alisada,
bolinada com o canivete Rogers, e recebia o
fumo, espalhado uniformemente com o indicador.
Com ajuda dos polegares, o enrolava em um cilindro
perfeito. Uma lambida na beirada, para colá-lo,
e pronto. Era só acender e sorver a fumacinha
cheirosa. Mas isto nem sempre tinha um bom final.
Era terminar de enrolar e o Mário, que
ao lado a tudo assistia, se babando em elogios,
vinha com costumeira lenga-lenga. "Seu
João, que coisa impressionante, é
o cigarro mais bem feito que já ví.
O Senhor é um artista. Dá prá
mim esta obra-prima. Quero ter o prazer de fumá-la."
O velho negaceava, mas sempre cedia.
Aquilo
foi cansando o coronel, que se esmerava no capricho,
mas quem usufria do êxtase era o Mário.
Ruminava uma vingança.
Uma
tarde, quando Mário voltava de um passeio
a cavalo, o veterano coronel começou
a lenta operação de fazer um cigarrinho.
Só que substituiu o bom fumo goiano por
autêntica bosta seca de vaca. Mário
chegou no justo momento do arremate e começou
a ladainha: "Seu João, o rei do
cigarrinho de palha, não vou permitir
que fume esta jóia. Ela foi feita para
seu amigo aqui que não tem sua maestria,
mas tem um paladar apurado. Eu mereço".
O velho matreiro, cheio de baldas, refugou,
negaceou, negou estribo, lamuriou e, protestando,
cedeu a tão falada obra-prima. O latagão
acendeu o cigarro, tragou lentamente, expeliu
a fumaça e veio com a lenga-lenga de
sempre: "Divino. Manjar dos deuses. Seu
João o artista do tabaco. Eta fuminho
bom."
O
coronel gozava interiormente a vingança
planejada e foi com sorriso cruel que deu sua
ferroada mortal: "Mário, seu tranca,
você não entende de coisa nenhuma.
Nem de bosta de vaca."
Retirado
do livro Causos: "a senhora dona galinha e seus
amores", de Hugo Prata
Referência
bibliografica
PRATA, Hugo. Causos: "a senhora dona
galinha e seus amores". Uberaba: Martins, 199?.
p. 19-20.
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