O
Fuscão Preto contra Mário
Palmério
Mário
Prata
Da
janela do décimo primeiro andar,
ouço o estridente e monótono
alto-falante lá embaixo a anunciar
o "sensacional comício do candidato
a deputado federal Mário Palmério,
hoje, às oito da noite, no Alto
da Abadia". Meu velho e bom amigo Mário
Palmério. Vou.
"Dentro
de instantes, aqui, no Alto da Abadia,
bairro de moças bonitas e rapazes
inteligentes, Mário Palmério,
nosso futuro deputado federal". E toma
rock nos altofalantes. Olho em volta.
Pouca gente. Muito pouca gente. Chega
uma Van, desce o candidato e seus pares.
Mário está com oitenta anos,
cabelos brancos e longos, quase um metro
e noventa, apoiado numa bengala grossa.
Olha em volta. Não deve estar gostando
de ver aquele pequeno público por
ali. Muito menos eu. Penso comigo: onde
esse homem está corn a cabeça,
para se candidatar a deputado a essa altura
da vida?
Parênteses
aos mais jovens: Mário Palmério
é um dos maiores escritores brasileiros
vivos Imortal da Academia Brasileira de
Letras. Escreveu apenas dois livros, que
bastaram: Vila dos Confins e Chapadão
do Bugre (que deu minissérie na
TV). Foi fundador e diretor de umas oito
faculdades em Uberaba, onde sempre morou.
Sempre não, porque já foi
deputado federal (sempre fiel ao PTB de
Getúlio Vargas) e morou num apartamento-barco,
subindo e descendo o rio Amazonas, durante
uns sete anos, fazendo sabe-se lá
o que, acompanhado (para inveja de todos
nós, mais jovens) de uma bela jovem
com semblante de índia brasileira.
Também já morou no exterior,
nas funções de embaixador
do Brasil e adido cultural. Hoje pinta
pássaros, apenas pássaros.
O homem é um gênio.
E
agora eu via ali o meu amigo Mário
Palmério cercado pelas poucas moças
bonitas e os poucos rapazes inteligentes
do Alto da Abadia. O Brasil não
tem mesmo memória. Pensei até
mesmo em subir no palanque e dizer para
toda aquela gente quem era o candidato
de cabelos ao vento que estava ali, humildemente,
na praça da padroeira da cidade,
a pedir votos. Ou será que seria
melhor subir, pegar o Mário pelo
braço, levá-lo de volta
para a fazenda dele onde, ao lado dos
seus 19 cachorros, ele deveria escrever
o terceiro livro que deve a todos nós?
Fui embora. E foi quando compreendi tudo.
Do
outro lado da cidade, um comício
lotado. Era o outro candidato a federal,
cidadão de nome Wagner Nascimento,
eleito prefeito de Uberaba pelo PRN (Collor,
Iembra?), e que até há poucos
dias dava explicações à
Justiça mineira sobre desvio de
verbas. Esse Nascimento é negro.
Negro como a sua esposa, que é
candidata a deputada estadual. E o apelido
dele é Fuscão Preto. A praça
lotada. Rojões. Chega o candidato
num fuscão preto, a banda ataca
a música e ele sai lá de
dentro, de próprio punho e garganta,
com um microfone. a cantar a sua música,
todo desafinado:
Fuscão
Preto
Você
é feito de aço
Fez
meu peito em pedaço
Me
ensinou a matar.
E
a galera delirava, mesmo sabendo que esse
Fuscão Preto sempre andou na contramão
da legalidade e pode estar engatando uma
marcha à ré no futuro da
cidade.
Volto
para casa abatido, como no samba do Vanzolini.
Mas não consigo dormir. O Fuscão
Preto toca durante toda a noite, eu fico
com saudades do Mário, que eu e
os meus conterrâneos de Uberaba
deixamos sozinho lá no Alto da
Abadia. Tentando dormir, lembro-me que,
uma vez, alguém no Paraguai perguntou
ao Mário o que era a palavra "saudade".
E ele, já que estava por lá,
respondeu com uma guarânia:
Si
insistes en saber lo que es "saudades''
Tendrás
antes de todo conocer
Saber
lo que és tener, lo que és
ternura
Vivir
por bien y por amor murir
Despues
comprenderás lo que és saudades
Despues
que haga perdido aquele amor,
Saudades,
soledad, melancolia,
És
lejania,
És
recordar,
Sufrir.
Pois
recordei ainda que, meses atrás,
estive com o Mário na casa do meu
tio Hugo e cobrei dele um livro novo.
Me disse estar com preguiça, enquanto
contava casos deliciosos. Contou-me, inclusive,
que a sua grande amiga Rachel de Queiroz
estava insistindo para que ele escrevesse
com computador. Me ofereci até
para dar umas aulas para ele. Mas ele
quer mesmo é ser deputado federal,
sei lá por quê. Mesmo sabendo
que o Fuscão Preto pode atropelá-lo
na reta final, mesmo sabendo que pode
furar um pneu nas viagens, mesmo sabendo
que a gasolina pode acabar, ele insiste.
Acha que ainda pode fazer mais alguma
coisa pelos uberabenses e pelos brasileiros.
Mas
eu, uberabense de nascimento e brasileiro,
não vou ficar triste se ele não
se eleger com os votos das moças
bonitas e dos rapazes inteligentes do
Alto da Abadia. Porque eu tenho certeza
que ele vai voltar para a fazenda dele
e, entre o desenho de um pássaro
e outro, vai fazer o que ele melhor sabe
e conhece. Vai nos dar o seu terceiro
livro. Fala com a dona Rachel. Peça
para ela mandar o computador. Promete,
Mário? Ou vai ficar no quase?
Publicado
originalmente no jornal O Estado de S.
Paulo, no dia 4 de agosto de 1994
Reproduzido do endereço:
http://www.marioprataonline.com.br
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