Confissões
de um assassino perfeito*
Mário
Palmério
Dormi, afinal, longo e imperturbado sono. Havia, de
propósito, deixado abertas as venezianas do
sótão, para que o sol pudesse entrar
livremente, e também o já previsto tropel
e alarido de gente aglomerada. Mas a claridade e o
vozerio não me acordaram mais cedo. Já
andava alta a manhã, quando me pus à
janela.
Isolado do povo pelos soldados de polícia,
fumegava ainda o borralho em que se acabara o grande
e bem sortido Armazém Vitória
espaçoso prédio de esquina, de muitas
portas e elevado pé-direito estabelecimento
comercial e casa de morada do capitalista e comerciante
português Herculano Castanheira.
Do madeirame, mal-mal restavam os esteios. O mais
tesouras e caibramento do telhado, baldrames
e tábuas do assoalho, fôlhas de portas
e janelas, enchimento do sólido pau-a-pique,
prateleiras, e caixotes, e barricas tudo se
reduzira a entulho de carvão e cinza. O que
apontava, aqui e ali, era rôlo ou outro de esturricado
arame-de-cêrca, retorcido saldo de ferragem
e lataria, dispersa cacaria de louças e garrafas.
Tentei enxergar, em meio dos escombros, a burra de
ferro que enchia, antes, todo um canto do armazém.
O cofre, entretanto, não se encontrava mais
em seu lugar, certamente que afundado porão
abaixo e soterrado pelas ruínas das paredes
e do telhado. Êsse, pesado de quatro águas,
fôra o primeiro a aluir, desconjuntar-se e desabar
com o estrondo de pronto me lembrei.
Da esquina avistavam-me debruçado à
janela do sótão, mas ninguém
erguia os olhos para me fitar com interêsse
especial. Entretanto, fôra eu, logo aos primeiros
clarões das labaredas e estampidos das caixas
de munição e de fogos de artifício,
quem correra à rua para ir esmurrar a porta
do Dr. Caldeira, dono do telefone mais próximo.
E fôra eu, também, o único de
cabeça fria a gritar, aos vizinhos e mais pessoas
que acudiam, tratassem de arrombar, o quanto antes,
a porta da casa pegada ao armazém, e arrancassem
lá de dentro a pobre de Dona Rôla e o
filho hidrópico e entrevado.
Se havia os que simplesmente passavam pela rua, pouco
se demorando em apreciar o desolado espetáculo,
ror de gente se acumulava, vinda de pontos vários
da cidade. O Delegado é que não voltara
ainda à esquina. Lá estivesse, eu já
o teria localizado entre os basbaques fácil
de se sobressair, gordo e grandalhão, sempre
de roupa branca e chapéu-palhinha, dêsses
de larga e mole aba derramada. Na véspera,
já ia bem adiantado o fogo quando êle
apareceu, seguido de um destacamento do quartel. Nada,
porém, pôde mais fazer a fim de impedir
a total destruição do prédio.
Logrou, apenas, evitar que o incêndio se alastrasse,
pondo soldados e populares a baldear, sem descanso,
em latas, bacias e panelas variado vasilhame
surgido de tôda parte mais água
do córrego próximo para encharcar as
paredes e o telhado do pequenino chalé de Dona
Rôla.
Assomado à janela, afastado da rua pelos oito
ou dez metros do jardim de nossa casa, eu ouvia o
animado rumorejo, mas não as conversas da pequena
multidão estacionada em frente. Fácil
imaginá-las, porém: lá gesticulava,
trejeitando mais ainda que de hábito, o Lulu
Fonseca, eletricista e operador do cinema, com certeza
a discorrer sôbre isoladores e chaves, fusíveis
e curtos-circuitos; além dêle, porção
de outros tagarelas a aventar mais hipóteses
do incêndio: um, a responsabilizar vela acesa
ou lamparina esquecida em qualquer canto, um segundo
a inventar mal-apagado tôco de charuto
Seu Herculano os fumava um terceiro a jurar
por combustão espontânea no barrilote
de pólvora de caça ou na prateleira
dos fogos-de-São João!
Não, ninguém perdia tempo em se preocupar
comigo, sujeito reservado e até que meio esquisitão,
envolvido sòmente com seus ratos, e cobaias,
enfurnado no laboratório do sótão
ou agarrado aos livros no escritório do andar
de baixo. Mas eu me ocupava com todos êles,
vizinhos de rua ou não, conhecidos e estranhos.
Observava-os, cogitando do que lhes andaria pela cabeça,
e ninguém me parecia suficientemente arguto
a ponto de levar a sério mais plausível
causa de um fogaréu daquelas proporções,
tão violento e tão completo. Ninguém
para ver, no incêndio do Armazém Vitória,
não simples obra do acaso, mas fruto do raciocínio,
da determinação e da habilidade de um
criminoso inteligente!
Não seria fácil, em verdade, entrar
despercebidamente em casa tão bem protegida
e aferrolhada prosseguia eu com minhas reflexões.
Em nossa rua, ninguém ignorava a existência
do gigantesco cão tigrado, sôlto por
bem dizer nos fundos do armazém, pois a corrente
que o prendia dispunha de argola corredia em grosso
arame de aço, atravessado de fora a fora no
quintal. E sabia-se também da segurança
das portas do Armazém Vitória, servidas
de chave e trinco, e ainda reforçadas de tranca
rijamente apertada a poder de cunha o mesmo
acontecendo com o portão do beco, usado para
entrada e saída da mercadoria em atacado. Depois,
o português sòmente se afastava do negócio
à tardezinha, permanecendo fora até
às nove e meia, dez horas quando muito
meio-tempo êsse em que a Rua Grande, mormente
a esquina do beco do Cotovêlo, se povoava de
meninada a brincar e correr; e era hábito,
naquela época, postarem-se as famílias
às janelas as pessoas mais idosas para
espairecer e apreciar o movimento, as môças
para namorar. Mal a rua começava a esvaziar-se
de algazarra e trânsito, Seu Castanheira voltava,
encafuando-se de nôvo. Feriados e dias-santos,
o armazém à meia-porta apenas fingia
que os guardava, aproveitando-os para pôr a
escrita em ordem, sempre atento, porém, às
precisões da freguesia. Mais dinheiro acumulava,
mais pontual e devoto ao balcão e à
escrivaninha! era assim o Herculano Castanheira,
dono do Armazém Vitória. E cada vez
mais seguro e vigilante de seus haveres, sem que tais
preocupações, entretanto, levassem-no
a deixar morrer nos beiços o sorriso gordo,
e também o charutinho.
Difícil, impossível mesmo, um bem sucedido
arrombamento na casa de esquina de Seu Herculano Castanheira
haveria de ser essa a geral conclusão.
Mas um homem de gênio, de incomum perícia!
sim, um criminoso dêsse porte não
recuaria ante embaraços apenas aparentes. Bem
que poderia transpor o muro de pedra em algum ponto
mais escondido pelas bananeiras e touças de
bambu que abundavam nas beiradas do córrego,
e atravessar o quintal, durante a ausência de
Seu Herculano, sem que o medonho canzarrão
o impedisse. E seria capaz, também, de abrir,
do lado de fora e em diligente silêncio, a porta
dos fundos com tôdas as suas chaves, e trincos,
e trancas, penetrar mansamente por ali e ir-se esconder
na salinha à direita do corredor, junto à
outra porta de entrada, a que dava para a Rua Grande.
Em seguida, como se fôra uma das muitas sombras
confundidas no calado escuro lá de dentro,
esperar. A rua, depois das nove horas, já andaria
menos movimentada, as famílias a recolherem,
as janelas a fecharem-se uma após outra. Sim,
esperar
esperar pelos a princípio remotos
e apagados passos no calçamento, ouví-los
vir crescendo pouco a pouco
Seriam passadas
já firmes e robustas as que se iriam aproximando
mais e mais, que desceriam o meio-fio do beco e subiriam
novamente pela calçada, que se acercariam então
para mais perto, para bem mais perto ainda, até
que se silenciassem, de vez, rente ao pé da
porta. Três, quatro segundos, quando muito,
e o arranhar da chave a meter-se, rodar na fechadura,
a lingüeta a estalar e recuar
A frincha
de luz da lâmpada acesa no poste da rua se alargaria
por completo. Não, ainda não: uns instantes
ainda, para que o português pudesse voltar-se,
dobrar o corpo e meter outra vez a chave no buraco
da fechadura, acioná-la de nôvo. No outro
canto do corredor, junto à porta, a tranca
:
deixar que o Herculano Castanheira a apanhasse, começasse
a erguê-la com as duas mãos
Aí,
sim! Ah, um, dois, três terríveis golpes
da alavanca de aço, bem maciços, bem
certeiros, de alto a baixo!
Assim devaneava eu, quando me lembrei das minhas duas
aulas de Ciências na Escola Normal Oficial.
Devia sair de casa mais cedo, em virtude de funcionar
a escola, aos sábados, exclusivamente no período
da manhã.
O Delegado não aparecia pela esquina, e afastei-me
então da janela, descendo pela escada em caracol
que ligava o sótão a uma espécie
de varanda, aproveitada por minha mãe para
sala de costura. Àquela hora, minha irmã
Amelinha já estaria a carimbar selos no guichê
de registrados da Agência dos Correios, e o
cunhado Vigilato há muito que teria acabado
de ordenhar suas vacas na chácara do Alto da
Misericórdia, e de despachar para o centro
da cidade a carrocinha-de-leite. Maria Eleutéria
atarefava-se na cozinha, e minha mãe andaria
decerto pela sala da frente a varrer, espanar, arrumar
seus vasos de flor, centros-de-mesa e outros enfeites,
ou senão pelo escritório a armar a mais
limpa e bem arranjada confusão em meus livros
e papéis deixados sôbre a mesa.
Resolvi ir vê-la e, enquanto caminhava para
os cômodos da frente, não pude evitar
de achar graça em um pensamento que então
me ocorreu: que grande dia para minha mãe,
aquêle sábado amanhecido por sôbre
as cinzas abrasadas do Armazém Vitória!
Poucas vêzes nossa rua se teria mostrado assim
alvorotada, com a vizinhança reunida na esquina
do Beco do Cotovêlo. E minha velha lenço
à cabeça, vassoura ou espanador na mão
a exibir-se através da porta e das seis
janelas abertas, feliz de poder confirmar a fama de
exemplar dona-de-casa, a mais eficiente e asseada
da Rua Grande!
Encontrei-a, porém, à porta da casa,
em companhia da Rosa e da Maria do Pedro Floro, as
duas vizinhas de nossas mais chegadas relações
de amizade. Rosa e Maria são irmãs gêmeas
- vivem até hoje, que eu sei, mas mudadas de
Itujuí faz alguns anos e sempre se pentearam,
se vestiram e se calçaram de maneira igual,
primando por realçar a já extraordinária
parecença entre uma e outra, até mesmo
no bom-gênio, curiosidade pela vida alheia,
tiques e jeito de falar.
Talvez por causa da semelhança entre as duas
é que eu não saiba, agora, dizer qual
delas, se foi Rosa ou se foi Maria, quem deu fresca
e minuciosa resposta às minhas perguntas. Não,
não haviam encontrado os restos carbonizados
do corpo do Herculano Castanheira. Na madrugada, o
Dr. Beltrão, o Delegado, desistira de procurá-los
por baixo dos destroços, ficando de voltar
mais tarde a fim de iniciar a busca, desenterrar o
cofre de ferro, inventariar tudo e abrir inquérito.
O cachorro? Não, o fila rajado, o odiento guarda
da casa do português, não morrera queimado,
como todos pensavam: conseguira escapar, que o arame
de aço em que se argolava a corrente ia até
aos fundos do quintal, lá onde as chamas não
chegavam. A Juventina, empregada de Seu Herculano,
avisada do incêndio, aparecera no fim da noite,
e os soldados derrubaram para ela o portão
do beco, para que pudesse entrar pelos fundos do armazém
e retirar de lá o cão apavorado. O terrível
fila parecia nada ter sofrido de muito grave, e a
Juventina o levara, prêso à corrente,
para as Bicas, onde ela morava. A fera seguira, porém,
cabisbaixa e lacrimosa, ganindo de dar pena, totalmente
acovardada. A pavorosa e tão próxima
fogueira pusera fim à braveza do animal
haviam relatado, com a segurança de quem a
tudo assistira com os próprios olhos, nossas
duas amigas sempre tão bem informadas.
Ficasse eu por ali, à porta de nossa casa,
e muito sôbre o incêndio do Armazém
Vitória ainda me contariam a Rosa e a Maria
do Pedro Floro. Aproximava-se, porém, a hora
das minhas aulas na Escola Normal, e deixei as duas
retomarem a conversa com minha mãe.
No banheiro, ao me observar no espelho, vi um rosto
refeito pelas muitas horas de sono, mas de feições
levemente sombreadas de surprêsa. Nada acontecera
ao cão tigrado! eu continuava repetindo
para mim mesmo, e com justificado espanto, a notícia
que me acabavam de dar. Enganara-me, então,
redondamente! Subira eu para o meu sótão,
decidido a ir dormir, absolutamente certo de que o
animal houvesse também sucumbido acorrentado
ao arame de aço, cozido aos poucos, assado
à distância pelo tremendo calor da fogueira
pois, após latir com furor durante o
comêço do incêndio, passara êle
apenas a uivar e cainhar pungentemente, acabando por
se calar em definitivo logo depois de ter o fogo derribado
as paredes e o telhado do armazém. Eu julgava-o
morto, e, entretanto, a Juventina o havia levado,
vivo e aparentemente são, apenas ainda estuporado
de terror.
Salvara-se, como que por milagre, meu bom amigo Golias!
fôra eu quem batizara o enorme fila com
tal nome, e sòmente eu, mais ninguém,
chamava-o assim - salvando-me também de um
penoso remorso que, sei, ha-veria (sic) de me acompanhar
para sempre. É que, por não atinar com
alternativa menos impiedosa, tivera eu de condenar
à tão horrível morte o pobre
cão de guarda, única testemunha do crime
cuja perfeição não admitiria
mínimo e mais remoto risco. E eis que outra
solução mais sutil e menos cruel
e me faltara imaginação para considerá-la,
viera oferecer-se por si mesma! O incêndio
não matara Golias, queimando-lhe vivas as carnes,
mas destruira-lhe o testemunho, reduzindo-lhe em cinzas
a memória.
Refletido no espelho do banheiro, meu rosto, como
que mais descançado, mais remoçado se
mostrava. Já então inteiramente desanuviado
de perplexidade, era um rosto tranquilo, que parecia
sorrir.
II
Sempre padeci de invencível aversão
pelo meu vizinho de rua, o português Herculano
Castanheira. E antiga, que vinha da quadra em que
a morte de meu pai me obrigara a abandonar os estudos
em Ouro Prêto, regressar a Itujuí, e
ir trabalhar na Farmácia Pettenkofer. Para
ser mais exato, já não gostava do homem
mesmo antes de o ter visto e não sòmente
eu, mas minha família, tôdas as outras
que moravam na povoada e unida Rua Grande, e mais
pessoas que conheciam a infortunada vida de nossa
acomodada e bondosa vizinha Dona Rôla do Capitão
Eustáquio Alves.
É
longa a história, mas posso resumí-la.
Primeiramente, o teimoso casamento da infeliz criatura
com o Eustáquio Alves de boa mas meio
aluada família de Itujuí logo
em seguida a procissão de maus-sucessos: o
nascimento do filho abobalhado e paralítico,
o abandono em que pràticamente deixou a mulher
o marido fanfarrão e estróina, a nunca
bem explicada morte do mesmo no sertão de Goiás
ou Mato Grosso lá onde gabarolava êle
tocar negócios de muita terra e muito boi
e, por fim, o inventário que se arrastou por
meses, e que redundou no desbaratamento da razoável
fortuna que Dona Rôla havia levado, ainda de
solteira, para tão mal-agouradas e desastradas
núpcias.
Meu pai, que era o advogado da viúva, falecera
antes de poder assistir ao desfecho do inventário.
Mas parecia adivinhar perdida a causa de Dona Rôla,
pois, quando o assunto vinha à baila, referia-se
êle ao Herculano Castanheira, principal credor
habilitado no espólio, com indignada acrimônia,
acusando-o, convictamente, de aproveitar-se de algum
apêrto ou bebedeira do Eustáquio Alves
para arrancar, do próprio punho do irresponsável
sujeito, documento de dívida e hipoteca com
expressas cláusulas de juros capitalizados
e pesada multa, tudo muito bem lavrado e testemunhado,
impossível de contestação.
Seu Castanheira, na época, vivia e comerciava
na cidade goiana onde de hábito parava o Capitão
Eustáquio êsse, já de arranjada
e pomposa patente, e sempre de mulher por conta, abancado
dia e noite às rodas de jôgo caro
e apareceu em Itujuí logo em seguida à
entrada da questão no Forum, para acompanhar
o julgamento da partilha. Pleito fácil e de
pouca demora, que logo se apossou, o português,
da boa casa de Dona Rôla, situada em frente
à nossa, na esquina da Rua Grande com o Beco
do Cotôvelo.
Chegou, e chegou de mudança, e foi logo mandando
abrir as cinco portas do negócio, pintá-las
de óleo verde-escuro e também
janelas, esteios, beirais do telhado e mais madeiramento
as paredes de nôvo branco amarelado.
Pouco espaço reservou para a morada de solteiro,
instalando, no melhor da casa, o bem abastecido e
variado Armazém Vitória, de vistoso
letreiro atravessado de canto a canto da fachada.
Pouco tempo levou Herculano Castanheira para estabelecer-se
na esquina do beco. Reformava, pintava a casa, arrumava
as prateleiras, mas não se esquecia de cuidar
dos seus futuros fregueses. Tôdas as tardes,
saía êle, de porta em porta, apresentando-se
às famílias da rua. Apenas em duas não
bateu: na porta do chalèzinho de Dona Rôla,
de quem tomara o agiota a propriedade, e na de nossa
casa, onde, ainda de luto fechado, vivíamos
nós viúva e filhos do advogado
da perdida causa do inventário da pobre mulher.
*
* *
Estreito e torto, praguejado de rabo-de-foguete e
mamonal, servido apenas de duvidosa pinguela enviesada
sôbre o ribeirão, assim conheci e freqüentei,
durante muitos anos, o Beco do Cotovêlo. Naquele
tempo, ainda era o caminho mais curto para o Largo
de Santa Rita, onde se localizavam algumas das necessidades
dos moradores da Rua Grande e das travessas que desciam
o Morro do Carretel. Além da igreja, na praça
é que mantinha severa escola de primeiras letras
Siá Josina do Major Pompeu, e se encontrava
o curral-de-leite do Juca Marajó, e o Mercadinho
Alegre, do Aristoclides de Sousa o Seu Sousinha.
Trecho por isso mesmo razoàvelmente percorrido,
a esquina da Rua Grande com o Beco do Cotovêlo,
justo onde Seu Herculano Castanheira havia estabelecido
o Armazém Vitória. Mais importante que
o movimento, era, todavia a proximidade do centro
de Itujuí, a Praça da Matriz, que deveria
bastar aos planos do português, pois nenhuma
demonstração dava de perceber e preocupar-se
com a indisfarçada frieza e má-vontade
da nossa vizinhança. Perseverante e disciplinado,
sempre sorridente e bem trajado de gravata, colête
e paletó, abria Seu Castanheira as cinco portas
do negócio às seis horas da manhã,
e nunca as fechava antes das seis-e-meia, sete horas,
já na boquinha da noite, sòmente depois
de acabado o trânsito das pessoas que voltavam
do serviço, de forçada passagem pela
esquina.
Ademais, itujuí não eram apenas os fregueses
da Rua Grande, vielas do Morro Carretel e mais adjacências
tampouco os itujuienses ùnicamente os
que por aqui residiam, vizinhos e conhecidos de Dona
Rôla do Capitão Eustáquio. Circulava,
já gazeta bi-semanal e muito lida, a Agro-Pastoril,
funcionava, diário, o Cine Polytheama
com quadrinhos de anúncios projetados
durante os intervalos das fitas e havia as
grandes tabuletas de chapa de zinco, de três
pés, boas de armar nos pontos principais da
cidade, além de andar muito em moda a distribuição,
de casa em casa, de programas, boletins e avisos impressos
de tôda sorte. Por via dêsses meios de
propraganda, e também de um perna-de-pau com
cartola e trombeta que cabalmente manquitou pelo centro
e pelos vários altos de Itujuí, tôda
a população, em curto prazo, soube do
nôvo empório da Rua Grande, bem sortido
de estoque, e, sobretudo, barateiro. O que era propalado
fàcilmente se verificava, que Seu Herculano
inaugurara o sistema de arrumar seus secos e molhados
junto às portas do armazém, de preços
fincados na própria mercadoria dos sacos e
caixotes, ou pendurados pelo fôrro e pelas prateleiras,
tudo a berrante tinta vermelha, bem à
vista.
Eu, pessoalmente, pouco tempo podia dedicar à
observação dessas manobras postas em
pratica pelo industrioso vendeiro no afã de
conquistar freguesia e se firmar na praça de
Itujuí. Como já disse, começava
minha vida de empregado no laboratório da Farmácia
Pettenkofer, ainda sujeito a apertado horário
de trabalho, prolongado não raro noite adentro.
Mas posso recordar-me das conversas de minha mãe
e Amelinha sôbre as malícias adotadas
pelo nôvo vizinho de frente a fim de vencer,
não sòmente a resistência da redondeza,
mas também a inevitável desconfiança
da cidade e outros embaraços decorrentes da
condição de forasteiro. Não havia
quem entrasse, pela primeira vez, no Armazém
Vitória comentava tôda rua
que não saísse engazopado de gentilezas:
se homem, obsequiado com sacudido trago de vinho-do-pôrto
ou da excelente caninha de Paracatu, ou ainda com
cheirosa e forte amostra de fumo-em-corda, goiano;
se mulher, o agrado soía serem mui mimosas
lembrancinhas, as mais disputadas uns potezinhos coloridos
para pimenta-do-reino e sal, e saquinhos de sementes
de horta e de jardim; aos meninos, o vendeiro os seduzia
mais barato ainda, mercê de apropriados engambelos,
tais como amendoim rebuçado, bolinhas de vidro
e tiras de espanta-coió. As empregadas, então
essa, a bilontrice, que mais birra provocava
em minha mãe e Amelinha ah, como caprichava
em tratá-las, de dobrados rapapés, o
pirata do português!
*
* *
O tempo corria, e se aproximava, com o fim do ano,
as comemorações de Natal. Foi quando
com ceteza já ciente da devoção
dos itujuienses pela data, e também para aproveitar
a folga de dinheiro que animava a cidade, motivada
pela alta do gado de criar Seu Herculano Castanheira
deu ainda mais convincente mostra de seu tino de comerciante.
Nem bem entrara novembro, e, um dia, desusado tráfego
de carroças, pesadas de sacaria e caixotes,
atravancou o trajeto da Estação de Estrada
de Ferro ao Armazém Vitória. O descarregamento,
conferência e arrumação de tudo
aquilo avançaram noite fora, lembro-me
bem , com Seu Herculano, já ajudado
de dois empregados de balcão, guarda-livros
e carroceiro de entrega, a comandar a azáfama,
dispondo, da astuta forma costumeira, a mercadoria
bem à entrada do negócio.
Eu nunca havia visto, até então, tanta
fartura e novidade em matéria de artigos de
Natal. Uma gôndola lotada os carroceiros
espalhavam a notícia carregada na própria
alfândega de Santos! E que fôsse mais
de que um vagão, e tudo igualmente se venderia,
tal o corre-corre dos fregueses despertados pelo anúncio
de primeira e inteira página, com excitante
lista de preços, estampado pela Agro-Pastoril
na manhã seguinte à chegada do sortimento.
Ora, não havia, na velha Itujuí daqueles
tempos, casa que não festejasse o Natal. Reuniam-se
as famílias para as fotografias em grupo, davam-se
presentes uns aos outros e especialmente à
meninada, promoviam-se ajantarados e ceias
tudo, é claro, dosado pelas posses de cada
qual. Em que mais porfiavam, porém, os itujuienses,
era na apresentação dos presépios,
apaixonada competição de inventiva,
bom-gôsto e habilidosa paciência. E pela
coincidência de haver entre os vizinhos vários
aficionados no gênero, acabava nossa rua por
tornar-se, nos fins de ano, no ponto para onde confluia
entusiasmado cortejo de curiosos.
Quando Herculano Castanheira provocou o derrame de
artigos de Natal, já andava acesa a expectativa
em tôrno do que iriam revelar, aquêle
ano, de espetacular novidade como já
de hábito vinha sucedendo, e sem falha de uma
única vez os admirados presépios
da Rua Grande, destacadamente os do Veronese da Emprêsa
Funerária e do Arísio Relojoeiro, italianos
os dois, e também rivais na montagem dos não
menos artísticos e famosos carros alegóricos
do Carnaval de Itujuí.
Para completar os preparativos dos festejos que se
aproximavam além do Natal, viria o Ano-Bom
e o Dia de Reis faltava apenas o que justamente
estava a oferecer o Armazém Vitória:
a barata abundância de guloseimas e bebêres
natalinos genuíno óleo de oliva
português, presunto defumado e azeitonas com
que dar graça ao peru, vinho tinto e vinho
branco, passas e nozes para os bolos, figos secos
e doces em conserva. E mesmo a gente mais modesta
cuidava de prevenir seu punhado de castanhas, e amêndoas,
e avelãs, a fim de que, mal principiassem as
visitas de boas-festas e a romaria dos apreciadores
de presépio infalìvelmente carregados
de filharada pudesse o dono ou dona da casa
mimosear, pelo menos as crianças, com consentânea
atençãozinha, por singela que fôsse.
*
* *
Resistiam ainda algumas casas da Rua Grande, entre
elas a nossa, à risonha estratégia de
Seu Herculano Castanheira. Permanecíamos fiéis
ao Mercadinho Alegre, do Largo de Santa Rita, cujo
dono, Aristoclides de Sousa o estimado Seu
Sousinha vivia a nos prestar favores, principalmente
no tocante aos contratempos de dinheiro que ocorriam,
hora ou outra, a êsse ou aquêle freguês
de caderneta. Em nosso caso particular, por exemplo,
quando a inesperada morte de meu pai nos pôs
em difícil lance, com contas de fornecedores
a pagar, e muitas outras dívidas, Seu Sousinha
se apressou a vir declarar à minha mãe
não se atormentasse com a caderneta em atraso,
tampouco se constrangesse em usar, de então
por diante e pelo tempo que necessitasse, do crédito
sempre aberto do Mercadinho Alegre. O episódio,
por si só, basta para dar idéia da simpática
pessoa de Seu Sousinha, dispensando-me da menção
de outros, sobrevindos a conhecidos nossos, socorridos
por êle em parecidas circunstâncias, sabe
lá Deus se não em ainda mais penosas
aperturas.
*
* *
Passavam-se os dias. Uma tarde, à hora do jantar,
ouvi Amelinha transmitir à minha mãe
o mal-sucedido resultado da corrida que havia dado,
ao sair da repartição, pelos negociantes
do centro da cidade. A maioria dêles, tal-qual
fizera o mercadinho alegre, acudindo a tempo, havia
suspendido suas encomendas de Natal, à vista
da invencível importação direta
providenciada pelo Herculano Castanheira, e o preço
que pediam os poucos outros empórios, que se
haviam adiantado em recebê-las, ia muito além
do cobrado pelo Armazém Vitória.
Durante o jantar, não mudou a animada palestra
das duas, ambas decididas a não permitir ficássemos
mais aquele ano sem Natal e sem presépio, conforme
acontecera no ano anterior, em virtude do recente
falecimento de nosso pai. Mas, presépio sem
bandeja de agrados às visitas seria algo muito
reparado em Itujuí, mormente na Rua Grande,
e, com maior razão para comentários,
em nossa casa eu conhecia muito bem a minha
mãe e minha irmã para adivinhar- lhes
a preocupação, e avaliar quanto sofreriam
com a simples idéia de quebra de prestígio
perante nossa numerosa e faladeira vizinhança.
Conversavam, cotejavam os altos preços do centro
da cidade com os pre;cos muito mais em conta do Armazém
Vitória, até que se foram convencendo
da conveniência de passar por cima da antipatia
ao português que nem sequer cumprimentávamos
e ir fazer com êle as compras de Natal,
imitando a já quase totalidade das famílias
da Rua Grande.
Eu me habituara a me não meter nesses assuntos
puramente caseiros, mesmo porque minha mãe,
muito ciosa de sua competente autoridade, repelia
sumàriamente qualquer opinião que eu
arriscasse, sempre apoiada por Amelinha, minha irmã
mais velha, e também teimosa e prepotente.
As duas é que arcavam com as despesas da casa,
e, pràticamente, com todo o pêso da amortização
das dívidas legadas por meu pai, sendo pequena
a minha ajuda, dado o insuficiente salário
que me pagava, na ocasião, a Farmácia
Pettenkofer, quase todo êle consumido pelas
prestações do microscópio e pelas
compras de drogas para meu incipiente laboratório,
além de um ou outro livro, tudo sempre muito
caro. Era, de fato, grande o sacrifício de
ambas, escravizadas a contada e recontada economia
eu tinha de reconhecer: uma, a matar-se sôbre
a máquina de costura e bastidores de bordado,
a outra pouco ou nada reservando, para seus gastos
pessoais, dos vencimentos percebidos na Agência
dos Correios. Daí o motivo de me conformar
à silenciosa anuência em tudo o que elas
ditavam sôbre a manutenção, administração
e mais normas de conduta familiar que prevaleciam
em nossa casa.
Conservava-me, pois, mudo, sem me aventurar a meter
meu bedelho na conversa das duas. Meu desejo, todavia,
era lembrar à minha mãe e à minha
irmã o juízo que fazia o nosso pai do
Herculano Castanheira, usuário desalmado, causador
da ruína de nossa boa vizinha Dona Rôla
do Capitão Eustáquio, e recordar-lhes,
ainda, as atenções que deviamos a Seu
Sousinha, do Mercadinho Alegre, cuja freguesia de
caderneta quem tão cego a ponto de não
o perceber? o ladino forasteiro arrebanhava
quase que por completo. Já haviamos passado
um ano sem Natal, passaríamos mais outro
Que maior importância havia sair ou não
sair o nome de nossa família na elogiada relação
das casas de Itujuí que montavam os mais bonitos
presépios, notícia essa publicada pela
Agro-Pastoril em sua edição comemorativa
das festas de fim de ano? Pelo contrário
pelo menos eu assim pensava: em vez de nossa posição
na Rua Grande sofrer abalo, mereceríamos, isso
sim, com mais essa prova de despretensão e
parcimônia, compreensão e até
elogios. Não comentavam tanto, e tanto proclamavam,
a altiva atitude de nossa mãe acostumada,
antes da morte do marido, se não ao luxo, pelo
menos a folgado confôrto por saber desprezar
pequenices de falso amor-próprio, e sair, ainda
de mal-aliviado luto, a agenciar serviços de
costura? Não apontavam, em Amelinha, exemplo
provocador de admiração por ter ido
atrás de emprêgo, obstinada, tal qual
a mãe, não em ocultar dificuldades e
sim em honrar os compromissos de dívida de
nosso pai?
Mas eu nada disse, que minha mãe e minha irmã
já organizavam a lista do que comprar ao português
da esquina. Inventei, mas foi uma obrigação
qualquer voltar à farmácia para
acabar de aviar receita urgente, ou ir ver meu amigo
Marcial Pedrosa, chegado de Ouro Prêto para
passar as férias com a família
a fim de levantar da mesa e sair de casa, e bem depressa,
antes que se lembrassem de me mandar, Amelinha ou
minha mãe, acompanhá-las ao Armazém
Vitória, aberto também à noite
para poder atender ao crescido movimento daquelas
vésperas de Natal.
* Romance inédito, do qual se publica os dois
primeiros capítulos.
Originalmente
publicado em:
Convergência - Revista da Academia Brasileira
de Letras do Triângulo Mineiro - Ano II
Nº 2 1º Quadrimestre de 1972. P.07-13.
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